segunda-feira, 22 de setembro de 2008

entardecer juntos - #4


Rosinha sempre acordou cedo, antes mesmo do marido quando ele ainda trabalhava. gostava de deixar tudo pronto para o pequeno-almoço dele e das filhas, que iam para a escola e depois para o liceu e faculdade. Hoje em dia, já não era preciso, mas habituara-se assim e hábitos antigos transformam-se em feitio. Colam-se a nós.
A camisa de dormir de algodão branco e florzinhas cor-de-rosa, chegava-lhe até aos pés enrugados e magros, preenchidos de salientes veias azuis.
Que a roupa lhe iria ficar larga com o passar dos anos, não era razão para grande espanto. Agora, quando começou a notar que essa mesma roupa também lhe ficava comprida, é que se desanimou. Rosinha encolhera. Há já muitos anos que começara a notar e não havia nada a fazer. Agora até dava jeito quando saía da cama, porque devido ao frio da manhã a camisa de dormir cobria-a toda até ao chão e muitas vezes tacteava as pantufas fofas com a ponta dos dedos, pois nem as via.
E ria-se, com a ligeireza com que as encontrava e enfiava nelas os pés, ainda há momentos aquecidos entre o marido.

Esticou devagar a mão para alcançar o roupão de lã, vestiu-o com o ritual demorado de todos os dias, das mesmas dores nas articulações. Primeiro um braço, depois descansou e só depois o outro. Levantou-se e o marido esticou-se na cama. Eram as dores na bacia que davam cabo das noites dele. Já dormia muito pouco e ela sabia-o. A custo, apertou muito ao de leve o cinto do roupão e doeram-lhes imediatamente os nós dos dedos deformados.
Pegou na garrafa de vidro com a água da noite, olhou para ele com um carinho sempre maior que o do dia anterior, enquanto o via ocupar o lugar da cama, que ela acabava de deixar vago. Sorriu ao ver dentadura dele dentro do copo e lembrou-se que quando ele a começou a usar, não se importou nada e até fazia brincadeiras tolas para os netos.
Mas Rosinha, não. Nem pensar. Ainda era vaidosa e nem queria ouvir falar de dentes a boiar dentro de copos de água e a rirem-se para ela durante toda a noite.
Já vais, Rosinha? Vou e deixa-te estar sossegado. Tenho de ir ferver o nosso leite e já te venho chamar. Deslizou silenciosa e encostou a porta atrás de si, para não o incomodar.

Colocou o fervedor com o leite ao lume, afastou as cortinas de bordado inglês, que costurou noutros tempos, deixou entrar a luz da manhã e fez festinhas no bico do canário branco, que cantou mal a sentiu. Então meu menino, é a mãe que já chegou. Tem fominha não é? Muita fominha, o meu menino. E ele cantava-lhe que sim, que tinha fominha.
As filhas já lhe tinham colocado a louça que mais usava, nos armários de baixo e assim tornava-se mais fácil lidar com aquelas peças frágeis, que lhe começavam a escorregar das mãos.
Por pouco, o leite não fervia outra vez para fora, lembrando-lhe que tinha de ficar mais atenta ou então aceitar o tal do micro-ondas que insistiam em oferecer-lhe.
Depois de posta a mesa com a toalha branca de ponto cruz, guardanapos de pano enfiados nas argolas de osso, tigelas largas para as sopinhas de leite, pão partido aos pedaços e os frasquinhos de comprimidos alinhados em frente de cada um, ia chamar o marido.

Fazia-lhe festas no pouco cabelo, ajeitava-lhe a dobra do lençol e ele fingia que acordava.
Já está tudo pronto Rosinha? Olha que tu me saíste uma noiva despachada e o meu beijinho, onde está ele?
Deixa-te lá de brincadeiras, que já sabes que não me posso dobrar. Riam-se destas tolices de jovens apaixonados e ajudava a levantá-lo.
Já se tornava tarefa difícil e desde a segunda operação à bacia que a prótese o incomodava cada vez mais. Queixava-se pouco, pois não queria preocupá-la, mas só dormia umas quatro horas por noite. Não tinha posição de estar e esticava-se na cama, mal ela saia de manhã. A melhor coisa que lhe podia acontecer naquela cama, era quando ela se levantava para lhe dar espaço às dores. Mas nunca lhe dissera.

Rosinha vestia-lhe o roupão de xadrez, calçava-lhe as pantufas, massajava-lhe as mãos doridas e colocava-lhe os óculos.
Ajudava-o na ida para a casa-de-banho. Lavava-lhe a placa, fazia-lhe a barba rala, colocava-lhe o clister diário, ajudava-o a sentar-se na sanita e no fim limpava-o com toalhetes frescos e perfumados com água de rosas. E lá vinha a piadinha do rabinho lavado com a água das ditas. A cena terminava sempre em troça.
Pronto, agora que já estás bonito, vamos comer. Na cozinha, era ele que servia o leite, juntava os pedacinhos de pão nas tigelas largas e envolvia tudo com o açúcar amarelo. Depois das migalhas sacudidas para a gaiola do canário, só faltava vestirem-se e sair, porque os banhos tomavam-se só lá pelas seis da tarde, quando a porteira os vinha ajudar.

Fora Rosinha, que ao longo de todos estes anos lhe escolhera sempre a roupa.
Tu vê lá o que é que escolhes, porque depois as velhotas do jardim não me largam. Olha, e tu veste aquele vestido azul que a nossa neta Maria te deu nos anos.
Pelo menos quarenta minutos, demoravam eles naquele ritual do escolhe, veste, calça, penteia, perfuma, brinca e ri. Chegava entretanto a ajuda domiciliária da junta de freguesia, que lhes vinha arrumar o quarto, dar um jeito à casa e à roupa e deixar o almoço e a ceia preparados. Bom dia, meninos! ‘Tá uma linda manhã para passear, aproveitem o sol.
Atendiam o telemóvel às filhas, respondiam a todas as perguntas com paciência, ouviam com um sorriso displicente as várias recomendações e mandavam beijinhos aos netos, cheios de vontade de os ver no domingo, no almoço da família.
Depois de desligar, riam-se e gozavam entre si com as preocupações tolas das filhas com eles, pegavam nos casacos, davam a mão e …

Anda Rosinha, vamos mas é namorar e diz-me lá que flor do jardim queres hoje tu, minha mais bela Flor deste meu canteiro?

24 comentários:

Pitanga Doce disse...

Andas numa de histórias? Vai mas é juntando-as que um dia vira um livro. E não te arrelies se vires que a Carolina Salgado lança mais um a tua frente. É assim mesmo.

Quanto ao texto, quem de nós terá a sorte de chegar a essas idades com companheiros assim? Ou até nós mesmas? Teremos, ainda, essa doçura quase maternal por alguém que um dia foi nosso amor? O homem da nossa vida? Saberemos nos despir da amargura, que ás vezes, a falta da juventude e saúde nos traz? Com o passar dos anos nós mudamos tanto que nem chegamos mais a nos reconhecer.


beijos já de segunda, Patti. E há lá em casa resposta à esposta.

joana disse...

Emocionei me com esta historia,que será de nós quando caminharmos para esta idade?
Mas apesar de tudo são felizes e isso é o que importa,linda mesmo sem palavras.
Beijinhos e uma boa semana

Gi disse...

Eu já ando a envelhecer "junta"; muitas vezes penso o que será de mim se ele se for antes; com quem irei partilhar tanta cumplicidade e, egoisticamente, sonho em morrer antes dele.
Depois, sacudo a cabeça, e penso que talvez nos esteja reservado uma outra possibilidade...
Ai mulher o que me fazes escrever!

Vera disse...

Lembrei-me dos meus Avós. Sempre queridos e apaixonados, de mãos dadas, de conversas à noite no quarto. Não sei se algum dia chegarei a este ponto...a vida actual é tão difícil!
Tu vais ter um livro e eu vou estar lá p'ro autógrafo, boa?
Beijocas
Boa semana :-)
Bom início de Outono!

De dentro pra fora disse...

Isto não se faz!, Logo pela manhã puseste a chuva a cair cá dentro também...Lembrei-me do que a minha mãe costumava fazer para o meu pai logo pela manhã, agora infelizmente já não precisa de o fazer, e acho que também ela sente a falta, do que fazia e para quem o fazia, mas a vida é assim...
Quem me dera terminar a vida assim de mãos dadas e ter uma gaveta cheia de boas lembranças e sorrisos para poder partilhar até ao fim...
Hoje fico assim com um sorriso molhado, pela saudade que me fizeste sentir.. :)

cecília disse...

Ainda há pouco tempo escrevi na minha cabeça um texto sobre uma velhinha que eu adoro e cujos gestos são parecidos com estes... A única diferença é que, com muita pena minha, já não poderá envelhecer mais, ao lado do seu companheiro de toda a vida, porque este lhe pregou a partida de ir à frente..

Parabéns, Patti, este texto é soberbo e cumpriu-se o ditado: não há duas sem três!

Anónimo disse...

Uma excelente história para começo de Outono.
Pois é mais uma para o futuro livro...

Anónimo disse...

Ainda bem que anda numa de histórias, Patti, porque tem histórias belíssimas para nos contar.
Esta fez-me lembrar os meus avós que estiveram casados 75 anos e nunca lhes vi fenecer o amor. Um dia, já ambos nadavam na casa dos 80, um amigo dise-me, enternecido, que os tinha visto no Jardim Zoológico a beijarem-se.
Acredito que ainda há amores assim.

Teresa Durães disse...

lembrei-me da minha tia-avó

Anónimo disse...

Lindo Patti,lembrei-me logo dos meus avós...foi assim até aos 97 anos...nao é lindo???

Qt ao canário, nao sei porquê, mas o dialogo tornou-se familiar para mim...mas talvez no feminino ( minha menina papagaia...)LO TIENES???¿¿¿ entao a da "mae já chegou" ahahaha

besos

maria inês disse...

é engraçado, como esta tua história, nos fez a todos lembrar tantas e tantas outras, por que passámos! senti-me muito feliz, ao relembrar a relação dos meus avós e dos meus pais!

o café não está esquecido! beijo grande

1/4 de Fada disse...

Tu contas histórias de uma maneira!!! Pertenço a uma longa linhagem de mulheres sozinhas, deve ser um defeito hereditário a incapacidade de aguentar por muito tempo a partilha da vida em comum... mas não é por falta de exemplo, que os meus pais já levam 50 anos de vida em comum e são o retrato fiel do aqui descreves.

paulofski disse...

Assim de repente deu-me uma vontade enorme de telefonar aos meus pais...

f@ disse...

Fico pensativa quando leio histórias assim...
Porque o tempo comtempla sempre os sentimentos mas esquece de nos poupar fisicamente...
eternece-me mto a dedicação e a dádiva quando como aqui impera o amor.... beijinhos das nuvens

Ka disse...

Delicioso este teu conto!
Quem não deseja viver assim até ao fim dos seus dias, não é?


Continua numa de histórias pois leio-te encantada!!!

Beijos

Anónimo disse...

O marido da Rosinha tem sorte, pena não ter nome.

Coragem disse...

Andas, andas e que histórias, fariam elas um belo livro...

Que amor,tão bem descrito patti, adorei.
Muito real, assim senti.

Beijo

LeniB disse...

Ao ler-te senti que era assim que devia ser...que as pessoas deviam envelhecer juntas, olhando-se todos os dias como se fosse o primeiro.
Quem sabe o que nos espera!!

BlueVelvet disse...

Andas numa de histórias e outonais, pelo que vejo.
Muito bem escritas, é claro.
Tenho este exemplo bem pertinho: os meus pais, vão lá já quase 40 anos anos.
Mas não sei...estes textos deixam-me melancólica...a Rosinha mais pequena, como a minha mãe...os dentes no copo, as artroses, enfim, tudo o que vem com a velhice.
E eu não estou preparada para ela.
Assusta-me e deprime-me, o que não retira nada à qualidade do texto, claro.
Boa semana

Anónimo disse...

E ainda dizem que não há amor eterno.....

Rita disse...

Ou eu hoje estou muito sensível ou então não sei porque mais uma vez me fizeste "ir às lágrimas" por uma lado porque gostava de envelhecer assim por outro porque sonhei esta noite com a minha avó e chorei muito abraçada a ela. Saudades...
Jokas

Filoxera disse...

Andas numa de histórias? Ainda bem. Nós gostamos de saboreá-las.
Beijos.

anniehall disse...

O meu comentário repete o da filoxera .

Susana disse...

e que bela história!