Maria, tinha um rotina diária parecida com a de todas nós, mas muito menos cor-de-rosa. Apenas parecida, porque trilhava um caminho diário diferente do nosso. Era triste.
Não andava, tropeçava. Em silêncio.
Tratar dos filhos para a escola, preparar almoços e lanches para levarem, acordar o marido ainda entorpecido da noite anterior, dispor-lhe impecavelmente e sem vincos, a roupa em cima da cama, deixar-lhe rapidamente, a casa-de-banho livre e limpa e o pequeno-almoço preparado em cima da mesa, como ele gostava.
Quando finalmente, a casa se esvaziava de todas aquelas vidas, restava ela.
Só o corpo.
Porque ela mesma, o ser humano, o âmago e a alma, há muito que tinham desistido de habitar a carcaça.
A vida, essa perdeu-a mesmo antes de morrer, no segundo a seguir ao primeiro murro seco e de punhos fechados, que a pôs a sangrar de um ouvido.
Nunca soube o porquê. Nem dessa, nem das outras vezes que foi achincalhada, desancada, maltratada, humilhada e abatida como caça brava.
Na marquesa do hospital onde era cosida, rezava sempre para que as compressas e os pachos de líquido desinfectante lhe limpassem também as marcas que não se viam. Mas isso não acontecia. Só as festas e os carinhos das enfermeiras.
Nunca abriu a boca. Nem para se queixar, nem para chorar, nem para reclamar, nem sequer para ele parar. Achava que era assim, já o tinha sido com a mãe e se calhar com a avó.
Por isso quase nunca falou. Tinha desistido antes do tempo.
A única súplica, mas muito sussurrada no escuro da noite, que se esvaía como fumo, por baixo da porta do quarto de casal e que arrepiava as paredes era:
‘Por favor, na cara não’.
A violência doméstica já matou mais mulheres este ano, do que em igual período do ano passado. De acordo com o Observatório de Mulheres Assassinadas, em menos de oito meses 31 mulheres foram mortas pelos companheiros. Agora os agressores já não só os homens de meia-idade mas também os jovens.
Fonte DN, 22 08 08
32 comentários:
Patti,
esta é uma realidade trágica que nem podemos imaginar porque nunca nos tocou, mas dói.
Ontem uma matou o marido. Felizmente que já há um Acordão em que uma mulher em situação igual, foi absolvida por se considerar que foi em legítima defesa.
É caso único mas pode ser que faça história, embora não seja a forma de acabar com este drama.
Beijinhos
É uma realidade infeliz, muitas vezes muito mais complexa do que somos capazes de imaginar...
Beijoo
Beijo imenso às Marias...
*
Eu vivi muito de perto este drama com a minha melhor amiga e madrinha do meu filho mais velho.
Há 2 meses ela LIBERTOU-SEdele, vamos ver se se LIVROU dele definitivamente.
Esperemos que a JUSTIÇA não seja cega, surda e muda.
Um conselho a essas mulheres: os agressores também dormem. Um único corte, num certo apêndice, e muitas teriam o problema resolvido. Sim, porque homens que não têm tomates e batem em mulheres, também não precisam do resto...
Texto bonito.
Texto triste.
Pela tristeza da realidade, pela tristeza do sofrimento e do silêncio.
Infelimente real.
Que comentários é que se fazem a este post, Patti? Todos nós conhecemos esta realidade, muitas vezes está ao nosso lado e não damos por ela, precisamente por causa da maneira como terminas: "Na cara não". E não escapam níveis sociais e educações. E há mais uma forma de agressão que, por ser diferente, não deixa de ser menos violenta nem de marcar menos, que é a psicológica. Nota-se menos porque não obriga a hospitais.
Esta é uma realidade demasiado dura para se ficar indiferente.
No entanto e infelizmente ainda impera o ditado "Entre marido e mulher, ninguém mete a colher" :-(
Os seus últimos posts obrigam, de facto, a uma séria reflexão sobre a Mulher na sociedade.
É revoltante constatar que a conquista da emancipação, da igualdade de direitos, da liberdade de expressão, de escolha, de assumpção de comportamentos, seja, ainda, e em muitos casos, apenas uma teoria, porque mais difícil que mudar as leis, é mudar as mentalidades e essas ainda estão muito enraizadas numa prepotência masculina ancestral.
Não sou feminista, nem machista, nem, tão pouco, jurista, e muito menos gosto de embandeirar em arco com apelos a revoluções, a manifestações e outras contestações, mas convém lembrar que só em 1983 foram introduzidas, no Código Penal, inovações, no que diz respeito aos maus tratos entre cônjugues e, 12 anos depois (apenas há 13 anos!!!), agravados estes crimes no mesmo Código.
O Acórdão referido no comentário da Velvet não deveria ser histórico, nem tão pouco deveria ser necessário chegar a esses extremos. Se calhar, bastaria que todos prestássemos um pouco mais de atenção e levássemos mais a sério as vozes que quase não se ouvem, os gritos silenciosos, abafados pela humilhação, as marcas escondidas num par de olhos ausente; sobretudo para as distinguirmos das palhaçadas de "violência doméstica" com que se inundam páginas de revistas cor-de-rosa e que banalizam, achincalham e ridicularizam as verdadeiras e banais vítimas.
Digo eu...não sei....
Cecília:
E diz muito bem. A dualidade da realidade da mulher é um facto. Fazemos frente a mais situações no dia a dia, somos mais fortes perante algumas adversidades e por outro lado continuamos muito débeis.
Fala-se dos agressores, que tinham esta idade, que se chamavam assim, que trabalhavam assado e delas? Ninguém nunca sabe nada. Só que morreu.
Cara patti com a devida vénia e permissão vou linkar este post no vilaforte.
Pedro:´
É uma honra, ainda para mais vinda de si. Uma honra para 'Elas', as vítimas anónimas desta vida.
Aqui por España todos os dias há um caso!...e mesmo com denuncias feitas anteriormente.
Nunca consegui compreender a razão que leva uma mulher a sofrer em silêncio os maus tratos de um homem durante toda a vida, mas tenho uma pequena história para contar:
Tinha uma amiga que de vez em quando aparecia toda negra e todos sabíamos as razões, mas ela inventava sempre histórias para justificar a situação. Um dia, uma amiga comum, cansada de assistir aquilo sem nada fazer, conseguiu convencê-la a divorciar-se, prestou-se a ser testemunha, levou-a reuniões na APAV e, ao fim de dois anos de imensa luta ela lá entrou com o processo de divórcio.
Estão divorciados desde 1983. Ainda hoje ela culpa a amiga por a ter convencido a divorciar-se!
Alguém é capaz de me explicar isto?
A minha homenagem a essas 31 vítimas, a minha homenagem a muitas outras que se seguirão, e ainda tu Patti dizes que os meus posts são "sombrios". É destes que é preciso haver mais. Denunciemos, gritemos, mesmo que a voz e os dedos nos doam.
Obrigado.
Patti,
Este texto dispensa comentários...
Vou apenas deixar uma dica, é que a violência doméstca, já tem uma expressão grande com os agressores a serem mulheres!...
Tretices por aqui
Patti: Sempre que leio ou sei de casos semelhantes o meu coração sangra de dor. Não entendo a violência; não percebo nem com mil desculpas.
Entendo o amor das vítimas mas no meu coração algo grita: Libertem quem assim é maltratado no físico e na alma.
Um beijo do Pj
Tretoso:
Com dados deste ano, posso lhe dizer que 87% das queixas entradas na polícia judiciária são de mulheres.
As restantes queixas dizem respeito a homens, idosos e crianças.
Que as queixas de homens agredidos aumentaram, assim como as dos idosos, é uma verdade.
Mas daí a serem uma grande expressão........
Sabe o que lhe digo na maior das franquezas, como é meu hábito? Se os abusadores, morressem mais vezes nas mãos das suas vítmas, como uma reacção de legítima defesa, os outros milhares de cobardes pensavam duas vezes.
Pensavam, isto é, de conseguissem conectar convenientemente as várias partes do cérebro.
Triste realidade Patti
No Brasil essa situação é muito grande, mas já temos casos na justiça em que mulheres que mataram esses crapulas estão em liberdade, onde foi provado legitima defesa...menos mal...que todas abram os olhos e deem um basta nisso
****
Li seus outros textos, simplesmente maravilhosos...parabéns
Beijos
Patti,
Em primeiro lugar, repudio totalmente a violência, em qualquer circunstância.
Aquilo que pretendia dizer é que as estatísticas são recolhidas de dados oficiais, provenientes de queixas ou denúncias.
Na verdade, muitas mulheres não denunciam, por medo, por vergonha e, frequentemente em meios pequenos, pois as autoridades a recusam, sublinho o recusar, aceitar as queixas, porque conhecem os maridos. Mas há muitos homens que também não o fazem por vergonha e porque ... quem recebe a queixa, não acredita, não a aceitando!...
Há muitas situações de atendimento médico que, depois de várias perguntas por parte dos médicos, os pacientes acabam por pedir que não denunciem a situação.
Tretices solidárias
Tretoso:
Nunca tive dúvidas disso. Nem me passou tal pela cabeça.
Os dados que lhe avancei, tenho-os comigo desde Fevereiro e por isso os indiquei aqui. São muito claros.
A vergonha, o medo do parceiro e o receio de perder tudo (filhos, casa, bens) é que 'dá cabo' de uma solução justa.
Nunca devia ser assim, nunca! É muito revoltante!
Esta é uma das realidades mais difíceis de entender!
É preciso agredir para ser macho?????
Nós, mulheres, e aqui vou falar apenas das europeias, somos fruto de milénios de influência judaico-cristã que tratou muitísimo bem de nos inculcar um enorme sentimento de culpa por tudo o que de errado acontece, maus tratos incluídos. Começa com o mito da criação e de Adão e Eva, continua em múltilos exemplos como a caça às bruxas da Idade Média e culmina na nossa época com a vergonha que as mulheres sentem na denúncia dos maus tratos e da violência doméstica. Fomos habituadas a sobreviver através da dissimulação e da mentira e é essa herança que se pagamos amargamente, mesmo as de nós somos mais evolíudas intelectualmente. Só com uma grande dose de esforço é que uma mulher conta abertamente que é vítima, porque sabe antecipadamente que, na maioria das vezes, vai ser julgada culpada por isso. Tomemos como exemplo as violações - quase sempre se diz que a mulher era bonita, provocante, estava vestida de forma a chamar as atenções. Uma amiga minha, que foi alvo de uma perseguição durante vários meses, apesar de ter apelado á polícia, não conseguiu ajuda absolutamente nenhuma, porque seguir não foi considerado crime, porque não era directamente abordada, e foi-lhe aconselhado pela dita polícia que se vestisse de cores discretas, abandonasse as saias curtas, não se maquilhasse, desse preferência a roupas largas, enfim, abandonasse muito do que a definia como mulher. Por pura sorte a situação deu em nada, mas ela acabou á beira do desespero e o mais grave, o casamento dela não resistiu ao episódio, porque o marido não conseguiu acreditar totalmente que ela não provocava a situação. Obviamente que ele nunca o confessou, mas todos nós percebemos isso e ela teve acompanhamento psiquiátrico durante bastante tempo. Será que se este episódio se passasse com um homem se levantariam as mesmas suspeitas? E caso se levantassem, será que isso não seria até abonatório para ele, na nossa sociedade tão machista? Para o ego da grande maioria dos homens, e reparem que não digo, de forma nenhuma todos, uma perseguição feminina seria motivo de orgulho, não de vergonha e nunca caso de polícia.
Fada:
Só não estou de pé a aplaudir-te, porque aqui em casa me chamavam de louca, se me vissem a fazer tal cena frente ao computador.
Se não tivesse o meu post de amanhã, já preparado e agendado ("promessa" que fiz), este teu comentário seria esse post.
É com enorme admiração e orgulho que te digo, que este foi dos melhores, mais sentidos e verdadeiros comentários que recebi no meu blog em quase oito meses de existência.
Fada:
Quanto à violação e/ou tentativa de; é aquela nojenta frase feita: "Assim vestida, estava mesmo a pedi-las!"
Patti, deste-me a ideia de fazer um post com o meu comentário... escrevi-o de "rajada", porque como percebeste também é um assunto que mexe muito comigo, e nem pensei que poderia sair daqui um post. Mas vou aproveitar a tua ideia e publicá-lo. Beijinhos e obrigada pela inspiração.
Infelizmente... Felizes de quem se conseguir libertar sem ser com a morte!!
retrato da realidade nua, crua e dura... o texto diz tudo. está muito bem conseguido, e é daqueles que nos faz eriçar ao de leve a pele...
parabéns...
tema complicadíssimo. dificil e duro de pensar que até os dias de hj a mulher ainda sofre algum tipo de violência em casa.
pra mim, o que dói ainda mais, por total conhecimento de causa, é a agressao psicológica, que mata aos poucos a alma da mulher. e que nao é facilmente detectada.
triste demais.
Importantíssimo o teu post. É preciso denunciar, gritar alto, ajudar as mulheres que ainda se calam a tomar consciência, ACABAR COM ISTO DE VEZ.
Esta é outra das coisas que não consigo compreender nos tempos que correm. Porque é que as mulheres ainda se sujeitam a este tipo de tratamento porque é que não desistem da relação. Antigamente ainda era compreensível elas não trabalhavam, dependiam financeiramente do homem mas hoje em dia felizmente as coisas já não são assim, não se compreende...
Jokas
Parabéns pelo texto... Esta é realmente uma realidade assustadora, pergunto-me sempre pq raio elas n se defendem... como já disse alguém aqui, eles tb dormem, e durante o sono nada como levar com um ferro na cabeça... mas pronto, isso é coisa complicada para quem foi educado a calar-se, a estar sempre em segundo plano, a servir de vassalo, para quem vive ás custas muitas vezes do agressor e n vê saida... por isso digo, que a melhor solução para se mudar este cenário, é falar-se desde cedo nas escolas dos direitos e deveres das pessoas como cidadãos, da igualdade de direitos e deveres entre os homens e mulheres, da importancia de termos todos uma independencia financeira... muitas vezes tudo começa como uma forma de descriminação. È claro que nem todos nós precisamos de ouvir isto na escola, mas infelizmente muitos há ainda que precisam de começar a ouvir palavras de mudança e incentivo logo cedo na escola.
Patti, eu já te disse aqui um dia e volto a repetir, Portugal precisa de mulheres como tu no pelouro. È preciso que as mulheres se juntem, continuo a ver muito poucas mulheres a zelarem por causas como estas. Não falo só da ajuda ás pessoas violentadas, q sei que já existe, falo de soluções a médio longo prazo para que esta realidade seja banida de uma vez por todas da nossa sociedade. Tenho dito. Beijo do sul.
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