quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

lindo serviço - #14


Foi um presente de casamento, herança de uma tia avó que juntamente com um louceiro antigo de pau-santo, me deixou para esse dia muito especial, aquele serviço de porcelana fininha e frágil, quase biscuit, que um lord inglês tinha oferecido ao meu bisavô em troca de um favor pessoal.

Ficou arrumado no louceiro antigo, num local privilegiado, pois quando se abriam as portas de par em par, dava-se de caras com pires fininhos e perfilados com vaidade, chávenas susceptíveis e emparelhadas aos tremeliques, bem ao lado do casalinho composto pelo açúcareiro e a leiteira e mais atrás, igualmente em destaque, o bule mais gordo e reluzente de todo o armário.

Nos primeiros tempos foi usado com bastante frequência, mas quando um invejoso prato de pirex, me lascou um dia um dos frágeis pires, pensando que eu não estava a ver, decidi protegê-lo e não o colocar tanto a uso, como até então o tinha feito. Também havia outros serviços que gostava de usar e mereciam a minha atenção.


Serviço raro e praticamente único à época, e sem companhia à sua altura, ressentiu-se, claro está.

Eu ouvia as chávenas a chocalhar umas nas outras quando abria as portas do louceiro, o meu bule não me parecia tão reluzente como antes e os pires já nem 'biscuiavam' nem nada, mas sinceramente não dei muita importância e até pensei que a bacidez do meu serviço se devesse ao pouco uso e confesso que deixei andar.

Só fiquei verdadeiramente preocupada, quando numa destas frias manhãs de Outono, fiz um chá de pinheiro de Natal e me lembrei de ir buscar uma das minhas velhas chávenas brancas.
Ora, todos sabemos que os chás de pinheiro de Natal servem-se a ferver, devido ao calor que vem das bolas coloridas, dos sinos, dos anjos, das fadas, das luzes e da estrela dourada do topo, não é?
Pois, o meu chá não. Mal o deitei na chávena de estimação e a levei à boca, estava morno, quase frio, que nem o açúcar derreteu e ainda me disse, podias ter avisado que hoje era ice tea!

Quase nem tive tempo de lhe responder, pois a minha chávena chorava-me nas mãos e do louceiro começou a vir um zum-zum suspeito.

Levantei-me, abri as pesadas portas do armário e digo-vos já, que o que vi não foi nada bonito de assistir. Um bule, outrora gordo e brilhante, era agora uma peça pálida e desenxabida e um líder destituído daquele serviço sem horizontes. Os pires coitadinhos, que já eram delgados de nascença, mais pareciam folhas de papel vegetal que até os veios se observavam a olho nu, de tão magros que estavam e as chávenas, desfaleciam umas em cima das outras, parecendo que iam tombar e partir-se em cacos, a todo o momento.

Claro está, que me consumi de remorsos e apesar da minha intenção ter sido somente de o poupar e proteger de futuras lacas irrecuperáveis, o facto é que o meu serviço não o sentiu dessa forma e quase que o levei à morte.


À morte sim, não estou a exagerar! Quando peguei nas peças, uma a uma, era vê-las pobrezinhas, aninharem-se no meu colo, a soluçarem como bebés, carentes de mimos e atenção.
O meu querido serviço sentira-se abandonado e entre fungadelas, lágrimas grossas e suspiros profundos, acabou por desabafar o seu rico percurso de vida, do qual eu já conhecia a história, mas deixei-o falar.

Trabalhava desde novo, primeiro com a minha bisavó Joana, em lanches séri
os e sem novidades de maior, com pão caseiro do verdadeiro, que levedava a massa na arca de madeira. Saía do forno de lenha a estalar e ia fazer companhia a um leite gordo e quente, acabado de sair da cabra Rosalina. Juntava-se tudo na mesa grande, com compota de amoras silvestres, doces e negras, mexida horas seguidas no panelão de ferro, mais a manteiga amarela, batida à mão nos serões de domingo.
Depois de umas assoadelas e de lágrimas já secas, o meu serviço de louça branca continuou o seu romance, agora nas mãos da minha tia-avó, Purificação.

Era posto na toalha de renda alva, durante chás de amigas casadoiras e cada uma na sua vez, trazia bolos secos, eclairs recheados e biscoitos macios, para aprovação e discussão de ingredientes, com as outras convidadas. Conversava-se muito de receitas, de pontos de cozedura do açúcar e dos milagres que uma pitada de sal fazia a certos bolos. O chá era de tília ou camomila, pois não se pretendia desajuizar meninas pueris. E que os homens se prendiam pelo estômago, foram segredos que o meu serviço ouviu.
E depois eu, que de tanto o ver na casa da tia-avó, a comovi com a minha adoração por ele e mo prometeu para quando eu casasse.

Aqui em casa foi muito utilizado, com bules re
petidos de chá preto e forte, bolo de laranja ensopado, macarones divinais, scones com nata fresca e fondue de chocolate, em fins de tarde de domingo.
Outra vezes, enroscada no sofá, com uma chávena de chá com mel numa mão e um livro na outra, em lanches de amigas, para colocar a conversa em dia e até em pequenos-almoços a dois.

foto do blog latest work
E pronto, agora está tudo resolvido, bastante mais calmo e terminou a choradeira.
Para solucionar a hipotermia de afectos, tricotei-lhe agasalhos fofos, camas com resguardos cálidos, cachecóis de duas voltas, mantas felpudas e até toucas e gorros da mais branca e pura lã.
Não voltei a arrumá-lo no louceiro de pau-santo e tenho-o mais perto de mim, perfilado e sempre à mão, em cima da mesa grande da cozinha e todos os dias nos cumprimentamos e nos servimos dele. E vai estar connosco neste Natal.
Ficou-me a lição, de que é preferível uma vida bem vivida, mesmo que com grandes lascas, do que um coração totalmente rachado, abandonado e sem uso.

30 comentários:

Anónimo disse...

Sábio conselho. Por favor não se desperdicem e façam o favor de ser felizes.

De dentro pra fora disse...

E não é que tens razão, as lascas sempre significam uma vivência cheia de historias para contar, muito melhor que a falta delas.
Adorei os agasalhos, ficaram um Must!

BlueVelvet disse...

Antes de te comentar fui a correr ver o estado dos meus serviços, desses que descreves, fininhos, antigos, que estão muito guardadinhos no sideboard. Vá que estavam como os teus!É que o combustível que me faz mover é o chá, mas em caneca. Faço até colecção.
Portanto os servicinhos estão ao abandono.
Mas não. Estavam lá, sossegadinhos. Provavelmente à espera da "mafiosa" que casar com um dos meus filhos.
O que me preocupa, é que com esse teu jeitinho especial de falar com as coisas, vá que um dia destes os vestidos que não vestes se revoltam? Abres a porta do roupeiro e, trau, deitam-te as mangas ao pescoço. E os sapatos ou as botas?
Sim, porque a casa é encantada, disso não haja dúvida.
E deve ser por isso que tu escreves coisas tão encantadoras.
E os barretinhos de lã ficaram um mimo.
Se não fosse cá por coisas, dizia-te aqui uma coisa.
Mas fica para outra vez:)

Gi disse...

Que lindo serviço ias tu arranjando, melheri!
Mais vale um serviço lindo do que um lindo serviço.

PS.: Quanto ao chá de pinheiro de Natal ... devias registar a patente. ;) Muito criativo.

Si disse...

Ó Patti,
Fiquei completamente derretida com este conto e não sou feita de manteiga nem nada!
Excelente, é palavra pouca para descrever o que se saboreia a ler, e as lágrimas até ameaçaram acompanhar a tristeza da louça.
Bonito serviço, não há dúvida!

Teresa Durães disse...

existe uma tendência para salvaguardar determinadas peças e pergunto-me sempre se serão para serem utilizadas depois da morte :)

Anónimo disse...

O conselho que dá no final foi algo que aprendi com a idade, depois de alguns dissabores semelhantes ( não com seviços de chá, obviamente).
Mas houve uma coisa que não me escapou. Chá com açúcar, Patti?
I can't believe!
Bem, pensando melhor, talvez o chá de pinheiro de Natal exija mesmo esse aditivo.

Patti disse...

Carlos:
Açúcar e muito. Chá, só mesmo doce.

paulofski disse...

E eu para aqui a ler esta delicada e fina escrita, enquanto bebrico um café com leite numa banal caneca de plástico. Saboroso o teu texto.

Beijinhos

Reflexos disse...

...é preferível uma vida bem vivida, mesmo que com grandes lascas, do que um coração totalmente rachado, abandonado e sem uso...

100% de acordo!

maria inês disse...

Que banal o "nosso" serviço á beira desta fina porcelana!

Álex disse...

é verdade, se não usamos não vive realmente comnosco, só vive na memória e...convenhamos, não dá muito gozo! sei que uma coisa é o sofá (que se manda estofar passados uns anos) outra coisa é loiça/cristal/etc, e com o peso que o ser herdado acarreta, mas também aprendi e concordo, há que ter as coisas queridas junto de nós.
quando se partem (ou pior, quando as partem outros...) é uma dor... mas a vida são também estes momentos menos bons

Anónimo disse...

A sua Narrativa é envolvente.

Mais uma vez...gostei.

Luísa A. disse...

Querida Patti, também tenho… ou tinha algumas belas heranças em porcelana fina de avós e bisavós. Isto até ao dia em que, graças à saudável «democratização» do serviço doméstico, penetraram na minha cozinha mãos masculinas. Então, em seis meses perdi todas as chávenas de um serviço de café de estimação (salvaram-se milagrosamente os pires) e em mais seis meses foram-se quatro chávenas de chá e a asa de um bule raro de uma fábrica que já não existe. Recolhi, portanto, os preciosos despojos à prateleira mais alta do meu louceiro e agora só ponho a uso peças de faiança com dois dedos de espessura… numa última tentativa de resistência à solução dos plásticos. ;-D

Anónimo disse...

Mas chá doce não sabe a chá, sabe a água quente com açúcar! Nem me imagino a tomar o meu mate com açúcar! Tal como o café...

Anónimo disse...

Fiquei com vontade de chá. Acho que vou já ao serviço de chávenas inglesas que valem não sei quanto e sofrem do mesmo problema das chávenas da história. De quando em quando eu lá chamo uma para aguentar o meu chá quentinho sem açúcar, mas oiço sempre a recomendação cá de casa:"vai pousar essas chávenas que o serviço é muito valioso, já não existe igual, deu-mo não sei quem. bla bla bla.". Mas eu não ligo e teimo em aquecer a chávena, porque também acho que ter as coisas só para se dizer que se tem e estarem fechadas num armário não faz sentido. É pior que não tê-las. Porque se não temos algo, desejamos essa coisa, quando temos e não ligamos é como se não existisse.
Tenho que mostrar este texto cá em casa para mudar mentalidades.

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Patti,
quem é que gosta de ser posto na prateleira? Nós não, certamente. E não é exclusivo do Reino animal, as plantas caseiras, quando abandonadas ressentem-se, para além da célebre fantasia de João Penha, o salgueiro apaixonado por um homem.
Além de que... lembro uma conversa de Duas Amigas na nossa mocidade. Dizia uma, conhecida por protelar a sua iniciação sexual completa, que, ia, com os anos, "ficando uma velharia". E respondeu a Outra: "Fulana, as velharias, para terem valor, têm de ter uso!
Assim o Servço que nos biografou, tão carente da concretização do Amor.
Beijinho

1/4 de Fada disse...

Acho que as bebidas mudam de sabor conforme o recipiente: o chá numa chávena de porcelana fina é completamente diferente do chá numa caneca! E o café numa chávena chinesa verdadeira tem um sabor único... manias!
E gostei muito do final, as loiças antigas contam grandes histórias.

Su disse...

gostei tantoooooooooooo de ler.t

jocas maradas de tempo.......

Patti disse...

PCP:
Essas senhoras, deviam ser as amigas dos chás da minha tia-avó Purificação.

Patti disse...

Luísa:
Bem vinda de volta, das suas mini-férias e essas mãos masculinas nos nossos tarecos são realmente um perigo. Mas pelo sim pleo não, vá lá dar uma espreitadela ao seu serviço.

mariam [Maria Martins] disse...

Patti,
parabéns! fantástico post. encantada e deliciada estou! eu, que adoro chá, e todo o ritual à sua volta, às vezes eu e as amigas parecemos a tua tia Purificação com as dela...e vamos rodando as casas rsrs, pena não ser muitas vezes... ah! e uma das minhas bisavós chamava-se Joana Maria :)
partilho da ideia do último § e também acho que demos dar uso aos objectos ditos valiosos ou mais raros, às roupas melhores levá-las uma vez por outra para o trabalho, porque não... mas confesso que me "esqueço" tantas vezes...

bom resto de semana
um abraço e um sorriso :)
mariam

cristina ribeiro disse...

Porque será que me lembrei daquela cena ternurenta do filme da Walt Disney, « A Bela e o Monstro », em que aparece o bule a verter uma lágrima de felicidade?

Gasolina disse...

Cá em casa também moram peças dessas, frágeis e de humor muito instável.

Mas eu não lhes dou sossego. Tudo o que há é para fazer uso. Dar prazer.

Com as palavras que acabaste de molhar no meu chá. Sem açúcar. Só lucia-lima.

Victor Cardoso disse...

Lascas ou rugas, as marcas que o tempo nos faz.
Sábias, sóbrias, as verdadeiras folhas que o calendário deixa no nosso corpo.
Maravilhoso texto.
Parabéns.

Anónimo disse...

Fui experimentar o chá de pinheiro de Natal.
Nada mau.....

Tiago Taron disse...

para já, assim directo, sem escalas nem progressão na carreira, o melhor texto de Natal 2008. Proust; Eça; Bridshead e algum Porto do lado dos ingleses. Feliz Natal

Patti disse...

Victor e Tiago:
Bem vindos ao Ares, obrigada pelas palavras e voltem sempre.

Laura Ferreira disse...

Fantástico.... adorei.

Anónimo disse...

Tanta ternura... :)
Vou saltar da cama, fazer um chá e bebê-lo de dentro de uma chavena "da minha avó"... podia "levar" o blog comigo e continuar a deliciar-me com os posts, mas nao... vou ser só eu e o calor do chá, da chavena, da avó, de outros tempos...
Obrigada por este momento! :)

Parabéns pelo blog (adoro!)

Daniela
verdusca@hotmail.com