segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

só se chora no fim

ilustração de matthew woodson

Um dia, deixou para trás o estaleiro da sua existência, em contínuas e intermináveis obras, e descobriu uma voz conhecida que lhe segredava truques já esquecidos e aparentemente sem importância, para conseguir sobreviver em situações de caos, terramotos físicos e turbilhões espirituais.
Como o seu, em que tudo espantosamente desfaleceu sob um solo oco e sem fermento, dissimulado por fortificações de aço e diamantes. Seguras por alicerces fantasmas, que com um empurrão no local certo, abateram e levando tudo atrás, apenas deixaram um pó branco voador, que se entranhou na pele e a impediu de respirar.
Dizia-lhe a voz de um eu há muito esquecido, que a cura de algumas feridas passava por fazer um novo corte de cabelo, esconder os brancos da raiz e descer o tom das madeixas.
Alterações frívolas, onde se levam tesouradas radicais nos amargos de boca, em que se pincelam os fios cinzentos dos desgostos, com tons quentes de caju e louros de Verão, deixando cair no chão, com o estrondo necessário ao despertar da alma, fios de cabelo antigo, triste e sujo da poeira da vida.
E olhar de uma vez por todas para um espelho com reflexos de verdade.

Segue-se, continuou a voz, o assumir dos desenhos finos que nos cortam a pele, idênticos aos vincos da roupa, o abrir em definitivo dos olhos, com um rímel forte à prova de lágrimas e segurar entre os dedos, para nunca mais deixar cair, todos os abraços, beijos e palavras cheias que vierem por aí. E acreditar que serão imensos.
Acalentar-se num vestido justo, difícil como a vida, conseguir puxar até ao fim o fecho comprido das dificuldades e aceitar com um sorriso forte, as curvas sinuosas que surgem nas esquinas do seu corpo.
Depois é fácil, basta calçar meias finas e por vezes hesitantes como os passos que der, enfiar-se em saltos altos, com vários centímetros de décadas duras, mas férteis.
Palmilhar a rua numa postura vertical, espezinhando com sabedoria feminina os obstáculos da calçada até à última pedra incerta.
Afinal, é assim que ainda hoje se é mulher.

23 comentários:

SONY disse...

Patti,
Gosto de te ler assim!!!

Penso que ainda não te tinha lido assim tão forte, gostei, muito bom mesmo.

Senti aqui a postura firme das palavras.
Jito,
Sony

Luísa A. disse...

Excelente, Patti! É quase sempre do que precisamos, de um pouco mais de confiança em nós próprias nos momentos críticos… Como diz o velho Oscar, «to love oneself is the beginning of a life-long romance». :-)

Anónimo disse...

Muito bem escrito. Palavras fortes! Obrigada por as partilhares com os outros. Parabéns.
Maria

Gi disse...

A postura e MULHER é mesmo essa;
Uma mudança de visual, um passeio de olhos por montras, um olhar com olhos de ver numa paisagem, tudo nos serve para enviar tudo o que nos faz mal para trás das costas.

Quanto ao chorar só no fim, essa é a parte pior: há quem nunca chegue a chorar, há pessoas como eu, que chora por coisas sem importância e não chora por outras, aparentemente, com mais importância, para as quais já me empederni.

Nina disse...

Uma beleza esse texto Patti, de uma firmeza, como disse sony, impressionante.
ser mulher nem sempre á tarefa mt fácil mesmo...

Anónimo disse...

Firme e segura!
boa semana
Para quem tem febre e dores de gaganta recomendo chá de Salgueiro, funcionou comigo este fds.
boa semana

Teresa Durães disse...

hum... não sou muito assim...

Brunorix disse...

... e depois da "última pedra incerta", chegar ao papel e deixar palavras de vida em frases de certeza.

Si disse...

Deve ter sido das melhores coisas que li, suas.
Curto, incisivo e pleno de imagens.
A cada vez que se relê, surgem novos pormenores, redescobre-se o significado de cada palavra, soltam-se novos tons da harmonia conseguida, como se, numa pauta, fossemos juntando novos instrumentos ao arranjo.
Parabéns.
Beijinhos

Anónimo disse...

Forma subtil, mas firme de apontar o grande problema da sociedade moderna, onde as pessoas se escondem atrás de máscarass, porque não ousam enfrentar a realidade.
Dantes, em termos estéticos, era exclusivo das mulheres, mas hoje em dia a "máscara" ( do físico, não apenas a da "peresona") também já tem seguidores no exército masculino.

Pitanga Doce disse...

"Só se chora no fim"...e a sós.

beijos, Patti

1/4 de Fada disse...

E aquelas que já nem no fim choram, Patti? Ou como disse a Gi, choram por disparates mas ficam impávidas perante as coisas importantes? E nem quando ficam sozinhas choram?

Paulo Tomás Neves disse...

«só se chora no fim»
por vezes nem no fim
beijinhos

Filoxera disse...

Belo texto.
Ser mulher é isto e muito mais. A nossa sensibilidade, a capacidade de nos desdobrarmos e de reiventarmos é especial...
Beijos.

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Patti,
belíssimo desvelar do que há de grandeza nos gestos triviais femininos de cada tocar do barco para a frente. Mesmo nas mais Expansivas vi sempre nas Mulheres que conheci uma capacidade de resistir ao sofrimento muito superior à dos homens, talvez porque partam de um enraizamento da dor maior, o que concerne à procura tocar com profundidade superior às circunstâncias, enquanto no género masculino o mais insuportável vá sendo a desconformidade do que esperavam para eles próprios.
Deixo uma pequeta citação de Barrès, em, como se escrevia outrora, singela homenagem:
"A pequena linha do sorriso das Mulheres perturba o pensamento dos sábios e, para nós, a subtileza das nuvens, até"
Beijinho

Ka disse...

Muito bom este teu texto....muito bom mesmo!

E mais não digo....(e tu sabes pporquê)

Beijosss

anniehall disse...

Não comento ....Parabens

LeniB disse...

A vida é assim mesmo: um palco onde desfilam várias personagens, todas encarnadas por um só ser, no meio de muitos "seres", evitando que os outros conheçam o nosso verdadeiro "ser"...
(gostei mesmo muito das "tuas" metáforas!!)

Anónimo disse...

Mulher, é isto mesmo!
Chorar só no fim, mas felizmente há-as que escrevem tudo isso muito bem!
:)

Victor Cardoso disse...

Patti, os meus sinceros parabéns, por ter pensado e desenhado tão bem esta Ode à Mulher.

Patti disse...

Vizinhança:
Este texto foi como alguns disseram e bem, um tributo à mulher e à sua forma de encarar a vida, de todas as vezes que lhe é pedido.
Obrigada pelas palavras.

paulofski disse...

Licença Patti. Simplesmente lindo, intenso, puro.

Beijo

JC disse...

Texto diferene daqueles que tem escrito, mas na minha modesta opinião muito forte e intenso.
Continue neste estilo, vale a pena