quinta-feira, 12 de março de 2009

a lírica


Naquela manhã, o poeta acordou entusiasmado pela primeira vez em muitos anos; vivo e inspirado.
Sonhara com Lianor, a donzela do pote equilibrado na cabeça, que seguia formosa e desta vez muito segura e confiante, direita à fonte onde combinara encontrar-se com ele.

Lianor, a linda e bucólica Lianor, que se passeia descalça pela verdura; Lianor de olhos cândidos, onde aliviado lê o amor que ela lhe tem, Lianor que o aguarda a meio dos seus versos.
O poeta saiu de casa a correr e numa alegria exultante, cumprimentou de forma efusiva todos os vizinhos, todas as crianças, todos os animais...as pedras da calçada. Ria de tudo e de nada, o amor viera finalmente fazer as pazes consigo sem sofrimentos, sem cativeiros e sem coisa alguma de fatalismos ou desgraças.
E mil versos perfeitos já lhe desciam ao pensamento, definidos nas rimas emparelhadas, interpoladas e cruzadas, para jogarem com mestria em composições líricas de erotismo comedido.
Eis que distinguiu Lianor junto da fontana fria, que de cabelo de ouro entrançado mas totalmente encharcado, se encontrava estatelada no chão segurando nas mãos de prata, a fita de cor de encarnado.
E rodeada dos cacos do pote, gritava furiosa: ai malditas abelhas que não largais nunca a fresca água da fonte; pragas demoníacas que já me fustigastes a manhã; oh maldito poeta, que não soubestes escolher outra estrofe menos escorregadia deste poema, para vos encontrardes comigo!

E Luís, perante o estrondo que aquelas palavras provocaram na sua alma, ainda há minutos em pleno júbilo, pegou entristecido na pena e no papel e em agonia principiou a escrever...

Aquela triste e leda madrugada
cheia toda de mágoa e piedade
...
...

26 comentários:

cristina ribeiro disse...

Na verdade, Patti! Além do Camões, o grande Camões, já coincidimos no Sinatra :)

gambozino disse...

muito bom mesmo! :) pobre poeta zarolho...

Luísa A. disse...

Gosto de ler as suas «introspecções», Patti, (nas quais me revejo), mas também já tinha saudades da sua imaginação (com a qual me evado). ;-)

fugidia disse...

:-)))
(delicioso)

Nina disse...

Tbm ja me vi assim, nao poeta, mas cumprimentando as pedras das ruas :)

CPrice disse...

Que "engenho" e "arte" Patti ;)

Gi disse...

Desculpaide, mui iluste Senhora minha, onde pusésteis o contraste, domásteis oconflito?
Está bem, abelhas, que haveis fustigado a Lianor e deixado Luís completamente cego dos dois olhos, pois Lianor já não o amava mais e ele, resolveu escrever épicos que nem no Magalhães cabem!

Si disse...

Estou aqui às voltas, sem saber como comentar este texto, quando as palavras que por aqui ficarem não condizem com a forma como este post foi escrito, colocando cada uma delas no local exacto...
Bolas, Patti, o Camões devia ressuscitar para ler algumas coisas suas!

Patti disse...

Si:
Que dizeis, SInhora minha?
Que sacrilégio!
:)

f@ disse...

“Ela ouviu as palavras magoadas/ Que puderam tornar o fogo frio….”

É pois assim que o coração a c o r da em manhãs radiantes como a de hoje…

Quantas contradições o amor nos submete … e assim mesmo nos extasia no prateado onde o coração a m a nsa entre o preto e o branco…
...onde sonha e in v e n t a um arco-íris raro…


Beijinhos

paulofski disse...

Aquela triste e leda madrugada
cheia toda de mágoa e piedade

Pela manhã escrevi a liberdade
e jaz a piquena, de bilha entornada!

Teresa Durães disse...

ahahah gostei desta ironia! por acaso ainda hoje estive a ler este poema

Justine disse...

Esplêndida paráfrase, Patti! Fiquei encantada com a fluidez "sur ton" e a ironia do texto:))
Os meus sinceros parabéns:))

Rosa dos Ventos disse...

Belíssima intertextualidade!
Só faltou o vernáculo de Gil Vicente na boca da Lianor, tão fermosa e furibunda.
Mas assim era difícil passar para "Aquela manhã clara...".

Abraço

Violeta disse...

"o amor viera finalmente fazer as pazes consigo sem sofrimentos, sem cativeiros e sem coisa alguma de fatalismos ou desgraças."
soa-me bem!!!
bjs

Anónimo disse...

Ah! Se Camões voltasse à terra e visse
o que brotou em terras de além mar
do que plantou a lusa traquinice
por arrostar o mar, por navegar...

Ah! Se Camões soubesse que o que disse
em versos decassílabos sem par
ao compasso da métrica a rimar
fez se imortal com lírica meiguice

talvez se comovesse à forma lusa:
com lágrimas, sem meios de as conter
E, por honroso, alegra-me dizer:

cumpriu-se o que inspirara aos Reis a Musa:
"Entre gente remota edificaram
novo rumo, que tanto sublimaram".


Diógenes Pereira Araújo

Anónimo disse...

EXCELENTE!

Bom fim de semana senhoria...

Pitanga Doce disse...

Lírica mesmo é essa música. Ó melodia tão linda! Sabes como gosto das Violetas.

bom dia Patti

Sunshine disse...

As partidas que a realidade nos prega!!!
Este texto está divinal.
beijinhos com raios de sol

BlueVelvet disse...

Já estou como a Si. Já é a 2ªvez que aqui venho para te comentar e não sei se consigo escrever um comentário á altura deste texto.
Não é só a excelência com que está escrito.É sobretudo a imaginação e a arte com que entrelaçaste dois estilos tão diferentes.
No fundo todos os ingredientes para um post soberbo.
Talento, é isso.
Parabéns, vizinha

Filoxera disse...

Que bom que é passar aqui e ler o que escreves. E a música...
Beijos.

Bacouca disse...

Como se consegue pegar numa "história" e acabar a "ver" outra?!
Como o "romantismo" pode ser abruptamente alterado? Só mesmo quem brinca com as palavras!
Muitos parabêns.

Anónimo disse...

Ainda invoquei Lianor, na esperança que me trouxesse as palavras certas para comentar este post, mas ela armou-se em difícil e fiquei com as palavras presas numa mescla de sentimentos.

Marie Tourvel disse...

Belíssimo texto, Patti, querida. Gosto muito da forma como escreve. :)

Um grande beijo

LeniB disse...

Soberbo este teu texto...vou precisar dele para ajudar umas pobres almas!!!

Laura Ferreira disse...

Sonoro e musical... a ouvirem-se as abelhas e o respingar da natureza...