quarta-feira, 1 de julho de 2009

verão em lisboa II

parque eduardo vii, foto minha

Aparentemente, uma estátua de pedra, inerte, sem emoções ou sentimentos. Mas na verdade, é que com esta não acontecia nada disso, coisa que me apercebi mal passei por ela nos costumeiros passeios tardios, feitos com o meu pai pelo parque das nossas vidas.
Conversávamos pois, e dizia-me que possuía alma e coração quente.

Não se sabe ao certo o que aconteceu, mas no instante em que colocaram o seu pedestal no espaço reservado naquele jardim para ela ser edificada, Camila, assim se chamava, adquiriu vida interior.
Será que foi, porque em tempos muito antigos e já sem memória ou repetição, habitaram por aqui seres especiais como os famosos pirilampos cantores, os conciliadores abraços apertados, lusos corações poetas e os verdadeiros sonhos realizados e que te deixaram na terra esta herança do sentir?, perguntei-lhe logo eu, que guardava comigo estas estórias mágicas que o meu pai me contava todas as noites.
Talvez, pois Camila alimentava-se do sentir as garras afiadas dos pássaros coçarem-lhe a cabeça e os ombros, deliciava-se com o pousar suave de borboletas e abelhas nas suas pestanas, agradecia ao vento que lhe penteava o cabelo e à brisa, por lhe limpar o pó cinzento que lhe poluía a pele-mármore.
Escutava segredos sussurrados e juras apaixonadas, de namorados que se acomodavam aos seus pés e perdia o sorriso lá para os lados da estufa fria, onde nos baloiços crianças como eu, espalhavam gritos estridentes de felicidade.
Passei lá outra vez, quando da Feira do Livro e fui cumprimentá-la.
Hoje, já velha e escurecida, com rugas sulcadas pelo efeito das rachas fundas no tempo, vive todas as manhãs a sua preferida e mais deslumbrante emoção: o gozo da vida, com o mesmo entusiasmo da primeira vez, no memorável dia em que para ali foi ganhar raízes.
Essa vida que ela testemunha logo na aurora, contém tons de azul, ou de verde, ou de cinzento, ou ainda prateado, mas é sempre lisa e calmante com nome de rio. E quando esse rio se aproxima da profundidade dorida, tão própria do nosso grande oceano, aceita-o com paixão, transformando-se num exclusivo apelido de mar da palha.
Bom dia Camila, salpica-lhe ele lá de baixo, ainda perdida nos teus pensamentos sobre a razão das coisas, minha amiga?
Claro querido Tejo, ninguém me tira a ideia de que esse oceano que te abraça diariamente, é a razão da melancolia deste povo lusitano.

27 comentários:

Gi disse...

Se a Camila se juntasse ao Camilo Alves não teria que pôr a mão em pala para avistar, melancolicamente, o Tejo.

Se se juntasse ao outro Camilo o Castelo Branco pelo menos ainda descia a Avenida.


PS.: Só tu mesmo para perceberes as minhas maluquices, Patti.

CPrice disse...

já foi estrada a percorrer.. caminho a desbravar, dificuldade para superar .. hoje? sem dúvida que concordo: razão de melancolia.

:)) gostei muito Patti*

Pitanga Doce disse...

"ninguém me tira a ideia que esse oceano que te abraça diariamente, é a razão da melancolia deste povo lusitano".

bom dia Patti
bom dia Camila

R.Rosmaninho disse...

Lindo!

paulofski disse...

Isto sim é que é sensibilidade, para escrever, para falar e fazer comover até as frias e petrificadas personagens de uma Lisboa tão tua e tão acarinhada nas tuas palavras.

Laura Ferreira disse...

Fez-me lembrar o "Príncipe Feliz".
E eu gostava de ser uma andorinha para lhe pousar no ombro...

Violeta disse...

Gostei da tua história sobre Camila, a estátua...
Bjs

Mike disse...

É lá agora a razão da melancolia... e a Camila tem coração, mas nasceu com ele empedernido, Patti. (o que eu sofro para conter o riso)

salvoconduto disse...

Fizeste-me lembrar a "menina da avenida", a estátua de uma mulher jovem, nua, sentada num pedestal entre a Avenida da Liberdade e a Avenida dos Aliados. Sempre que ali passo paro por lá uns momentos e procuro recordá-la como a conheci, velha mas linda, linda de morrer.

Quando a Avenida dos Aliados foi remodelada entrei em pânico, querem lá ver que vão dar cabo da minha velhinha? Felizmente Siza Vieira que não ouviu outras preocupações minhas deve ter ouvido esta.

Gasolina disse...

O rio da minha aldeia.

E Camila a azular a vista ouvindo estórias de Pai que dá a mão à filha.

Que lhe perguntaste hoje?

Lucia Luz disse...

Lindo Patti.
Fico pensando se a Camila pudesse dizer tudo o já presenciou.....

Isabel Maria Mota disse...

Lindo Patti! Tenho para mim que quando a cidade dorme ela dança e passeia-se por entre as árvores, sem que ninguém a veja... Beijinhos, Isabel (Milharado)

Luísa A. disse...

Essa emoção da Camila é a emoção de quem, do alto do Parque, observa Lisboa e o rio aos seus pés, literalmente falando. Sempre vivi aí ao lado, Patti, e nunca deixei de me surpreender e encantar. ;-)
P.S.: Há dias, descobri o novo (que já não parece tão novo assim – o pelouro camarário dos jardins tem andado muito desleixado) Jardim Amália Rodrigues, com o seu estaminé, a sua esplanada e o seu lago. Nunca lá tinha estado e achei um espaço simpático, embora sem nenhuma vista (pelo lado do estaminé). Conhece, Patti?

pedro oliveira disse...

é engraçado, ás vezes também dou por mim a olhar para estátuas e sinto que há por lá a alma de quem representam.O Tejo que nos levou além fronteiras é o mesmo que agora nos amarra, mas a culpa não é dele, a culpa é deste povo que ficou amorfo e cagarolas.bjs

Sunshine disse...

Talvez seja. Há poucos dias um amigo justificava a lelancolia dos ilhéus com o mar.
beijinhos com raios de sol

Filoxera disse...

Muito bom, este teu post.
Li-o ao Vasco.
Beijos.

Patti disse...

Luísa:
Eu também morei aí bem perto muitos anos e a emoção de que fala, é exactamente assim, de quem tem o rio aos pés.
Não conheço, o jardim Amália Rodrigues, mas já vi uma foto lá no seu Nocturno e fiquei curiosa; para a próxima passo lá.

Nina disse...

Tirar beleza de uma estátua... só alguém com tamanha sensibilidade pra escrita...

mariam [Maria Martins] disse...

Patti,

Belo!

(também gosto de estatuária)
mas nunca conseguiria escrever tão bonito!

um sorriso :)
beijinhos
mariam

Rosa dos Ventos disse...

Sorte a da Camila que ganha vida a olhar o rio da "nossa aldeia"...
Sorte a tua que a podes olhar, olhar o rio e contar-nos recordações tão doces!

Abraço

f@ disse...

Essa vida que amanhece nos tons e sons… e se acalma no céu azul para sonhar ao entardecer no horizonte das tuas palavras escarlate e prata…
Mto Belo…

Imenso beijinho

Pedro Branco disse...

Adoro estátuas.

Texto-Al disse...

mt belo, Patti;)

T.

Anónimo disse...

Venho desejar-te um belo fds.
Cresceu-me a alma hoje na estátua que fui ontem.

Beijinhos apertadinhos e repenicadinhos nessa tua cabeleira loira.

Si disse...

Si (comment enviado por mail):
Não consigo aceder à caixa dos comentários, mas este texto não podia deixar passar. Está fabuloso, com uma profundidade que reflecte o amadurecimento da sua escrita. Um ano depois, ainda consegue surpreender-me!

Patti disse...

Gi:
Adeus morena e apanha-me sol na cabeça, para queimares as teias de aranha. Credo, assustar assim as pessoas ...
Beijinhos, vou-me p'ró passeio, ora bem!

Si:
Não me envergonhe SInhora!
Volte masé para o blogobairro, que tem muitas continhas a prestar, aqui com a sua PresidentA, ah pois é!

Bacouca disse...

Patti,
Texto extraordinário de quem sente Lisboa e a alma lusa! Temos o oceano que se abre à nossa frente e que uma insigne geração nos levou à conquista do Mundo. Que é feito desse povo aventureiro, corajoso e com visão do futuro não será uma pergunta feita pela "Camila" e a razão da nossa melancolia?
Um beijinho