quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

feliz natal e um grande 2010...

... para todo o meu blogobairro querido!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

crónicas de graça # 6

O Natal

Ando tão atarefada e azafamada, que nem tempo tenho conseguido arranjar para a minha visita ao Ares e contar-vos das novidades aqui do bairro. E essa lufa-lufa toda é porquê menina Amelinha, perguntam-me vocês?
Por causa do Natal!
Dos aprontamentos. Das compras no supermercado. Das decorações. Da ajuda ao senhor padre Hipólito. Do apoio às famílias necessitadas do bairro. Das rifas da paróquia. Da compra do pinheiro. Da escolha do bacalhau, das couves e do grão. Do musgo para o Menino. Dos postais de boas festas. Dos preparativos para receber a família do Norte e a da Beira e a do Sul e ainda os compadres das ilhas. Dos fritos para o Onofre padeiro. Dos fritos para fora. Das mantinhas para os cães e os gatos do canil. Da sopa dos pobres.
Pois é, eu sou das tais que vivem esta época intensamente; com uma grande alegria. Apesar da falta que o meu Alfredo me faz, já o sabem. Excepto com aqueles que por razão de força maior, como a experiência de uma fatalidade, não vivem bem esta quadra, não tenho a mínima pachorra para os abutres do Natal. Credo! Fechem-se em casa.
Ora embirram com as compras, ora com os doces, ora com a música, ora com as luzes, ora com o trânsito, ora com o pai natal, ora com os frutos secos, ora com o bolo rainha. Livra!
Oh minha gente, embirrem lá mais para o início de Janeiro, que até é um mês estúpido e tudo, e deixem o Natal sossegado. Oh valha-me Deus.
Que há muita desgraça no mundo, muitas crianças com fome, muitas famílias sem tecto, muitas pessoas sozinhas, muitas guerras sem fim. Pois há. Aqui no bairro também, mas não aparecem só no Natal, estão por cá todo o ano. E quanto a mudar o mundo, nada posso fazer. Posso e devo consertar o que me rodeia, na esperança que se repercuta nos outros e assim por diante. Tipo efeito dominó. Se todos plantarmos uma flor no quintal, o vizinho imita-nos e todos os quintais ficarão mais bonitos. Agora, aquela maniazinha de virem só nesta época, chamar a atenção para os problemas do planeta, encanita-me. Mas os problemas não duram todo o ano? Pois se não estão satisfeitos, tentem mudar as coisas, ou não é?

Bom, adiante.
A minha azáfama começa logo em finais de Outubro. A família espalhada pelos quatro cantos do país, aterra toda aqui no bairro a partir do dia 22, e há que acomodar esta catrefada de gente na minha casa. Fazer camas, baixar divãs, pedir colchões emprestados, escolher toalhas, cobertores e lençóis. Enfim, um cansaço mas que muito me agrada, não fosse esta a festa da família.
São os meus pais de Mirandela, mais os meus irmãos e as mulheres e a filharada toda, que vêm de lá com o cabrito, o pão, as nabiças e o melhor azeite do mundo; os primos de Gouveia que me trazem as perdizes à moda lá da terra, mais as trutas abafadas; a minha cunhada de Porto Santo, com o bolo de mel, o licor de amoras e os fartos de batata-doce; os meus tios de Serpa, carregando cabazes de papos-de-anjo, a encharcada, a garoupa para a canja, o tinto alentejano e as azeitonas; e finalmente os meus compadres marafados, com o rico polvo, duas caixas de lingueirão e o folar doce do Natal. Aqui a Amelinha, contribui com o bacalhau da rua do Arsenal. Não falho um ano.
Depois, há que dar uma mãozinha ao padre Hipólito, no auxílio às famílias mais pobres do bairro, que em regra têm também muitas crianças. Este ano, calhou-me a partilha da minha ceia de Natal com a família Pereira. Têm cinco filhos, o pai está desempregado e a mãe faz limpezas aqui pelo bairro. Muito humildes, mas gente muito honrada. Portanto, mais pessoal para sentar à mesa. A Zeneide manicure, aquela rapariga moderna que me elucidou acerca dos sonhos góticos, é que me deu a ideia de eu fazer um jantar rolante ou volante, ou andante, ou lá como aquilo se chama. Girante, é isso: um jantar girante. Chic, não acham?
Também adoro aquela parte dos presentes. Não posso gastar muito, já se vê, mas de um giro pelas lojas da baixa, é que eu não abro mão. Era só o que me faltava, falhar com as compras de Natal.
E para quem não anda muito abonado como eu, aconselho ali o território que vai dos Fanqueiros ao Martim Moniz. E não se ponham com caganças de lojas finas, porque a zona de que vos falo é muito catita. Ele é pijamas de seda indiana, dez pares de peúgas a 5€, guarda-chuvas coloridos, caixas de jóias chinesas pintadas à mão, com desenhos de pagodes dourados, despertadores com a música do Pingo-Doce, televisões, rádios, leitores de dvd e consolas, de uma marca muito boa, mas que agora não me lembro o nome porque está em chinês,
carteiras de marca, porta-chaves de pele genuína, pauzinhos de incenso e fatos de treino de nylon, muito jeitosos.

E finalmente, os fritos. Os famosos fritos de Natal, pelos quais sou afamada aqui e nos arredores. Todos os anos despacho para fora, quilos e quilos de encomendas que me começam a chegar logo em Novembro.
São os sonhos de abóbora, de cenoura, de maçã, de gila e este ano inovei com os de banana: um sucesso! Sou também a melhor nas fatias douradas, pois faço-as com o pão que o meu rico pai me envia lá de Trás-os-Montes. Ficam assim ensopadinhas, ensopadinhas. E os coscorões? Querem lá ver coscorões mais amarelos e estaladiços que os meus? Isso é que era bom. Até o Onofre, o padeiro esquisitinho, mos encomendou este ano porque os dele tinham a textura de trapo. Só vos digo que não há azevias de grão como aqui as da Amelinha. Grão-de-bico! Do bom e verdadeiro, que na comida eu não sou cá mulher de fazer poupanças.

E é tudo amassadinho com as mãos. E não se me estala o verniz, não senhora. Horas e horas de vira e revira, amassa, esmurra, bate, volta e torna a voltar. Quero cá essas modernices de Bimbes e máquinas de pão e mainãoseioquê!
E também não me venham cá com conversas de comer com moderação, um bocadinho ali e um bocadinho aqui, e mais o cuidado com a linha, e mais a boca cosida, e mais a figura e o raio das dietas. Querem lá ver coisa mais disparatada que esta, de fazer restrições na alimentação durante o Natal? É com cada moda que inventam hoje em dia.
Bem, deixa-me lá ir. Ainda tenho duas mantinhas para acabar de tricotar e levar ao gatil, três dúzias de filhoses de abóbora, encomendadas pela Lurdinhas da mercearia, não posso faltar à missa das nove, levar dois aquecedores a óleo ao lar da paróquia, ajudar a vizinha do segundo direito a colocar a estrela no topo do pinheiro e ainda, dar um saltinho à loja do chinês para comprar mais papel de embrulho. Tanta coisa ainda para aprontar.
Mas que o meu jantar
girante, vai fazer furor no Natal cá do bairro, ai isso vai.

E o senhor Carlos, o que me diz desta época?
Ass: Amelinha (o meu alter-ego)

Crónicas de Graça #1, #2, #3, #4, #5.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

pois...o Natal


Se vocês soubessem, o que eu já comi de doces de Natal...
Uma pecadora. É o que eu sou.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

no confessionário aos 40 #5


Este sábado fomos maridar para a esplanada preferida.
Também por lá paravam o sol obra-prima, aquele sol branco-inverno, picante e fundo, acalentador da nossa pele, nutriente; as ondas-mulher que barafustavam altas e espumosas, desde o fundo do horizonte prata até à praia, onde decidiram estalar o seu sal na areia amarelo-palha; aves marinhas de bico cor-de-laranja e corpo preto, riscado de branco meigo; duas dezenas de apaixonados da água gélida, pontinhos negros, formigas laboriosas, barbatanas de tubarão, que saltavam para o corpo das pranchas, dançando sobre elas sem parar, enquanto houvesse pista para andar.

O mar nunca é tão mar, como quando se funde com o sol do frio-norte.

amado, foto minha

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

vírus* num blog sério e familiar #9

foto simon baker

Bom fim-de-semana!
(Reflictam meninas. Estamos na época apropriada.
Mas com conta, peso e medida. Nada de depenarem as asinhas do anjinho, por favor).

* la, la, la, la, la, la, driving home for christmas, la, la, la, la, la, la...
(Post agendado, sigo sem net).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

sopas de letras portuguesas # 1


Texto inspirado em: "Não venhas tarde!"

Dizes me tu com carinho,
Sem nunca fazer alarde
Do que me pedes, baixinho
"Não venhas tarde!",
E eu peço a Deus que no fim
Teu coração ainda guarde
Um pouco de amor por mim.

Tu sabes bem
Que eu vou p'ra outra mulher,
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer,
Tu estás sentindo
Que te minto e sou cobarde,
Mas sabes dizer, sorrindo,
"Meu amor, não venhas tarde!"

E blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

Quando era miúda, este fado do Carlos Ramos ouvia-se muito na rádio - ou melhor, na telefonia.
Sempre gostei de fado, é a música da minha terra, mas a este detestava-o - e sigo a detestar.
Primeiro e antes de compreender alguma parte da letra, era a voz do homem que me incomodava: arrastada, falsa melosa, quase suplicante.
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
Depois, na idade da compreensão passei a antipatizar com o protagonista da história: mas ele tem uma amante? e é casado? e vai ter com outra na cara da legítima? e ainda diz que ela sofre de ciúmes?
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
E finalmente, a raiva a esta letra personificou-se na traída: mas a parva ainda lhe diz para ele não vir tarde? e com carinho? sem fazer alarde? sem azedume? e ainda se vai despedir à janela? oh mãe, mas como é que a mulher atura um marido daqueles?
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
Mas, coitada da desgraçada. Só alguns anos mais tarde entendi que era uma situação comum à época. De educação. De formação. De lei, até. Mulheres em casa com os filhos. Cumpridoras e pacatas. Eles na rua e onde bem lhes apetecesse. Cumpridores também. Mas já não tão pacatos.
Depois, a minha mãe, que felizmente sempre foi muito acima do seu tempo, contou-me que só em 1966, é que a mulher casada teve autorização do marido, para exercer uma profissão liberal ou na função pública. A palavra autorização, é fantástica, não é? Mas alto lá, ele ainda tinha o privilégio de poder denunciar o contrato de trabalho da mulher.
Nesse mesmo ano, a mulher casada alcançou também o direito de ser detentora de património próprio e de poder movimentar contas bancárias. Uma sortuda, já podia ter mealheiro e tudo!
Só em 1969 é permitido à mulher, viajar sem autorização do marido. Influências da ida à lua, só pode!
Até 1975, era multado aquele marido que assassinasse a sua mulher por razões de adultério. Ela ia presa. E upa, upa!
Em 1976, o marido perde o direito de violar a correspondência da mulher. As despesas da capelista, da mercearia e a conta mensal do talho...
Só em 1978, o marido perde o título de "chefe de família".
E eu de boca aberta com o nonsense da coisa.
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.

Assim, não é de estranhar que este detestável fado, tenha sido à época, cantado e recantado vezes sem fim.

Oh Gi, mulher laboriosa com as letras, tu reescreve-me aí estes execráveis versos e desencanita-me o fado, menina!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

aqui vou eu # 2

P'ra lá...


e p'ra cá


E no dia 10, vou estar aqui e ali.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

crónicas de graça # 5

O Alfacinha

Parece que o único registo existente para a origem da palavra alfacinha, que designa há muito os lisboetas, tem explicação nas colinas da Lisboa primitiva onde abundavam "plantas hortenses utilizadas na culinária, na perfumaria e na medicina": as alfaces.
Alface vem do árabe e foram os nossos avós mouros, os responsáveis pelo cultivo da planta quando da sua ocupação da Península Ibérica - Al-Hassa.
Há quem fale também de um cerco que a cidade sofreu e que mais não havia para comer, do que alfaces.
Dizia também, Oliveira Marques, que a Lisboa burguesa de finais do século XIX, tinha o costume de nas domingueiras tardes de calor citadino, se reunir em grandes almoçaradas pelas muitas hortas dos arredores de Lisboa. O típico peixe frito era acompanhado, ao que parece, com astronómicas quantidades de salada de alface. Quem vinha de fora, achava tudo aquilo tão pitoresco, que passou de uma moda estranhada a caricaturada.
Eu sou alfacinha de gema. Ali do meu Chiado, logo na sua primeira esquina, a da rua Serpa Pinto.
Os alfacinhas, como tudo na cidade, vêm sofrendo transformações. Não pretendo nenhum relatório, vou falar apenas dos que me lembro; dos do meu tempo, seja ele qual for.
Recordo-me de muitos géneros de alfacinhas. Não havia somente o alfacinha típico, que a maioria fala e conhece a fama.
Aquele bairrista que esfregava o olho mais rápido que o diabo, encostado estrategicamente nas esquinas da avenida, donde atirava piropos às criadas fardadas que passeavam os meninos das casas ricas. Os empolgados aficionados, organizadores dos bailes dos santos populares, com manjericos, flores de papel com quadras populares, alcachofras queimadas à janela, molhos de alfazema e rouxinóis de barro que apitavam na boca das crianças por esta altura, em toda a cidade. Os alfacinhas que discutiam com a varina, o preço do goraz, da posta de pescada e da petinga para o gato. Os que enfeitavam as varandas com vasos cheirosos de sardinheiras encarnadas, que estendiam os tapetes a arejar nos varandins de ferro, que penduravam a gaiola do canário no exterior, que traziam o grelhador para a rua e assavam a sardinha, o bacalhau e o frango assado. O alfacinha malandro e estroina, biscateiro e calão que trazia sempre uma história nova, para enganar o primeiro que encontrasse ao caminho. O fadista marialva e boémio. O alfacinha que se não fosse benfiquista, não era bom chefe de família.

bairro estrella d'ouro - graça, foto minha

Recordo também muitos outros alfacinhas.
Na entrada do ano, estes alfacinhas compravam o Borda de Água a fim de consultar as festas, os dias dos santos e os feriados sem domingo. Passeavam no Campo Grande, onde se alugavam barcos e bicicletas. Desciam a Avenida em família. Paravam nos Restaurados à conversa. As salas de espectáculos esgotavam e usava-se a palavra matiné para o cinema, o teatro e tardes de dança.
Alfacinhas que lanchavam na concorrida Baixa e faziam refeições tardias, nos muitos restaurantes e cervejarias abertas até desoras. Sem problemas.
Cruzavam-se alfacinhas anónimos, com alfacinhas poetas alfacinhas músicos, alfacinhas actores, alfacinhas atletas, alfacinhas escritores. E acenava-se com a cabeça, num cumprimento educado.
Alfacinhas que enchiam espaços tão distintos como os cafés e esplanadas, livrarias, retrosarias, casas de discos, padarias, jardins, drogarias, hortos, mercearias, jardim zoológico, miradouros, o castelo. Esgotavam-se as ruas.
As alfacinhas e as filhas iam à modista, à capelista e subiam aos grandes armazéns do Chiado e eles, engraxavam os sapatos sussurrando politiquices baixinho.
As empregadas das lojas tinham nome próprio, as vizinhas raminhos de salsa e as caras dos motoristas de táxi, não nos eram estranhas de todo.
Lisboeta. Lisboano. Lisboês. Lisbonense. Lisbonês. Olisiponense. Lisiponense. Lisbonino. Alfacinha.

Alfacinha consagrado por Garrett nas suas Viagens, capítulo VII: "Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a Rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare".


almeida garrett-avenida da liberdade, foto minha


E o tripeiro, meu parceiro, é mesmo verdade que o nome oficial nasce de uma revista editada em 1908, ou tem a ver com a gastronomia, ou ainda com aquela história das invasões napoleónicas?

Crónicas de Graça #1, #2, #3, #4

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

parasimpattias #2


Exercício: Um objecto acompanha desde o início do casamento, a vida conjugal de um casal.
Esta é a sua visão da história.

Sou um garboso dálmata de louça luzidia. Imponente e majestático. De porte altivo, ocupando um lugar de destaque na residência dos meus donos, embora os tempos áureos do meu passado, nada tenham a ver com a situação que vivo presentemente.
Acabadinho de sair do forno, fui comprado ainda cachorro por um casalinho de apaixonados, recém-casados. Ai amorzinho que peça mais linda! Ai que ficava tão bem na nossa entrada! Ai que brilha como os teus olhos! Ai que me fazia tão feliz se o levássemos! Ai mais não sei o quê! Ai mais não sei que mais.
Eram assim, a Mariline e o Ismael. Amorzinhos, beijinhos, festinhas, meiguices, pieguices, lambuzices e outras parvoíces. Fiquei um pouco enjoado, confesso. Até para mim, um cachorrinho que adora lambidelas, aquela peganhice toda me parecia um exagero. Mas lá fui. Confiante que de tanto carinho, algum haveria de sobrar para mim. E não me enganei.
Fui colocado no hall, defronte para a porta da entrada, logo ao lado de um belo móvel sapateira, de carvalho polido e ferragens douradas, que faziam clara concorrência ao meu brilho natural.
A minha enigmática postura, impunha-se naquele hall, como um general na frente das suas tropas e espalhava-se por toda a casa. Ninguém me ficava indiferente. Era carismático e possuía uma imagem envolvente, como o amor daqueles dois.
Eu sou um dálmata de nível, sóbrio e com um certo pudor, por isso não me vou pôr aqui a relatar a intimidade dos meus donos. Mas que subiam paredes, ai isso subiam!
Pronto, já que insistem, eu desbronco-me um pouco. Mas só um bocadinho.
Não estou a cometer nenhuma inconfidência - os vizinhos do prédio são testemunhas - se vos disser que havia festa todos os dias. E noites.
Ele era caixas de bombons e ramos de flores exóticas, às sextas; técnicas acrobático-sexuais aos sábados; reflexões tântricas aos domingos e ramboiada da grossa, às segundas e quartas. Nas terças e quintas, jantares românticos em trajes sadomaso e desenvolvimento do léxico amoroso do casal: pombinha, fofinha, pote de mel, arrufada, patanisca, aboborinha e meu rabanete.
Mas não se esqueciam de mim. Era tratado imaculadamente. Davam graxa ao amor deles e puxavam-me o brilho com sonasol verde. Estudavam-se um ao outro e limpavam-me o pó com minúcia. Mergulhavam horas em perfumados banhos de espuma e colocavam-me no buraco que tenho na base, um perfumado sabonete de alfazema.
Todo eu rutilava e o meu corpo mais não era, do que um espelho reflector da feliz vida de casados da Mariline e do Ismael: plena de atenções, excitações, miminhos e beijinhos.
Mas não há fome que não dê em fartura. Com o tempo, fartaram-se da marmelada. Foram escasseando os bombons e as flores. Os dias marcados para as suas loucuras, também sumiram do calendário. Eu ali no meio do hall, já numa posição meio enviesada, como a relação dos meus donos. A cabeça virada para a porta da cozinha. O pó acumulara-se no meu corpo, os ácaros faziam pouco de mim, o brilho da minha louça, outrora o centro nevrálgico daquela decoração, esbateu-se-me, ganhando uma película baça, levemente gordurenta.
Depois começaram a gritar um com o outro, a arremessaram objectos: a colecção das caixas de bombons, os ramos de flores secas, os cintos de ligas, o chicote e as algemas. Esgotadas as peças do seu amor, depressa se voltaram para algo mais prosaico: frigideiras, jarras e comandos de televisão.
Fiquei sem uma orelha, ganhei um buraco no lombo, perdi um olho e esfolei o focinho, ficando marcado para o fim dos meus dias.
Hoje em dia, não me fazem caso. Já não me limpam o pó, ignoram-me a perda do viço, não me lavam e esqueceram-se do último sabonete de alfazema dentro de mim, só resta o invólucro vazio. Arrasaram como o meu orgulho de dálmata autóctone, fazendo-me reduzir a um vulgar enfeite. Um bibelô inútil, sem salvação.
Que saudades dos meus colegas da loja de decoração. Onde estarão todos vocês? Que donos lhes coube? Que vidas presenciaram? A fonte de pedra com o menino a jorrar água pelo cântaro; a sevilhana orgulhosa disposta em cima da cama lacada; os pratos de louça azul, com provérbios e ditos populares; os sofás de veludo verde, em capitonê; os centros de mesa com frutas plásticas. O quadro do menino da lágrima.

E a menina, que nos conta você querida almofada?