quinta-feira, 31 de março de 2011

em delito


Hoje, a convite da Ana Vidal, estou aqui.

domingo, 27 de março de 2011

encerramos todos os dias no domicílio


Sentia-se já saturada das caixas e da profissão. Anos de aperto, de cheiro a cartão, de açúcar e bolos, da espera, da posição contorcida.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Aquelas caixas-presente eram cada vez mais fedorentas. E acanhadas. Muito permeáveis. Absorviam o ar saturado, que de fora lhe chegava espesso da cerveja, emborcada em goles desmedidos.
O cartão deixava passar o cheiro dos charutos beras, mais as viris prosas gargalhantes, que se viviam do lado de lá daquela caixa.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Depois dos 30, trazia a respiração mais difícil, transpirava como um rio, nasciam-lhe bigodes de suor, o biquíni agregava-se ao seu pregueado corpo ensopado, desatinado por se desapertar. As lantejolas, baças e velhas, soltavam-se, indo-se confundir na repugnante cobertura do bolo que a encobria.
Finalmente o alívio da música. As primeiras notas de uma rapsódia antiga, avisavam-na que iria rebentar pela caixa afora.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Com um sorriso sedutor imposto pela profissão, deveria procurar um rosto de solteiro atemorizado e dançar para ele. Vagarosamente. Aliciá-lo, provocá-lo, fazê-lo soltar o dinheiro e prendê-lo nas tiras do biquíni.
Não sentia os músculos, não sentia o creme do bolo a desmoronar-se debaixo de si, não se sentia resvalar.
Não se sentiu capitular.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.

quarta-feira, 23 de março de 2011

outras vezes não


Às vezes utilizo um sistema de desocupar as palavras. É físico. Entro nelas.
Interiorizo-lhes o sentido, retiro-lhes o recheio e depois escrevo-as como eram antes de serem escritas. Só emoções. E som.
Às vezes utilizo um sistema de desocupar as palavras. Pego em água e sujo-a, dando-lhe opacidade, ou junto-lhe sal para a pôr no mar, ou ainda lhe ofereço uma gota de cheiro e chamo-lhe perfume.
Ou a esvazio de vez, e torna-se seca.