Quando entrou na sala da biblioteca, para o nosso café com letras, foi imediatamente aplaudido. Ficou envergonhado e deitou-nos a língua de fora. Avisou-nos que falava baixo, o que é verdade, pois algumas vezes o micro não foi suficiente para a sua voz chegar a todos.
Começou por dizer ao Carlos Vaz Marques, que quando iniciou este livro, o Arquipélago da Insónia, não tinha nada, mas depois apareceu-lhe uma voz, a voz que lhe foi dizendo o que escrever. E é assim que tem sido com os seus últimos livros, chama-lhes as vozes do eu, vozes sem nome e que estão dentro de nós.
Noutros tempos, fazia um plano de escrita para os livros e muitas vezes saía furado. Agora não, vai atrás dele, do livro e é este que lhe diz o que deve escrever.
“Um bom livro, é um livro que foi escrito só para mim, com o qual eu tenho uma relação pessoal e afectiva. Escrever é a minha razão de viver, a minha alegria e também sofrimento, mas é a minha sina”.
Fica espantado quando lhe dizem, ah o seu livro é tão complicado. Não compreende quando alguém da plateia afirma, que as suas últimas obras são labirínticas. “Labirinto? Que palavra tão estranha! Aquilo é tudo tão claro, tão óbvio”. O público ri. Não é assim tão fácil e este último não foge à regra, mas eu sigo o conselho dele quando nos diz: “Se deixarmos os sentidos pensarem, começamos a gostar de livros bons. É preciso ter vivido para escrever, mas também é preciso ter vivido para ler”. Também já lhe disseram que o livro é triste. Não acha nada. É alegre porque se sente a felicidade da mão do autor. É assim que entende, que este é um livro feliz.
"Gostava de cada vez mais, encher os livros de silêncios; silêncios para os leitores os preencherem como quisessem. Temos de aspirar ao silêncio, para conseguirmos escrever livros a sério. O leitor é que é importante, não o escritor". Diz da acusação de falta de pontuação, “ela está lá, apesar de não a verem; está nos espaço e no tempo da escrita, façam-na". "Sinatra foi quem foi, pelos intervalos de respiração, pelas paragens que fazia quando cantava”.
Falou do que pensa acerca da avalanche de publicações em Portugal, que se faz sem qualquer critério de escolha, pré-revisão ou qualidade. Nos EUA, tal não acontece com as editoras. O rigor é grande e existe uma peneira.
A discrepância é tão abismal, que isto diz tudo da maneira de como cá se publica um livro.
Quanto ao Nobel, tema que já é de praxe, ALA tem uma opinião com a qual eu corroboro na íntegra, “toda a gente faz apostas para o Nobel da Literatura, todos falam dos escritores nomeados, todos têm uma opinião a dar, mas ninguém dá sugestões, opiniões ou pareceres, acerca dos outros prémios e dos seus possíveis vencedores; do Nobel da Economia, da Medicina, ou da Física. Falam de Literatura como se fosse coisa que todos entendessem. Não é.
A Literatura é outra coisa. É estar entre os homens, no meio deles, não é contar-lhes histórias".
Já foi mal-educado noutros tempos, já pediu desculpas e recebeu lições de boa educação de quem ofendeu. Do excelente poeta Vasco Graça Moura, por exemplo. Ri ao lembrar-se que chamou gorda à Natália Correia num programa de televisão, mas arrepende-se. Diz imensas piadas pelo meio, tem muito sentido de humor, peculiar, mas tem, fala das mulheres, conta-nos que prefere escrever na cozinha, que divide o atelier onde escreve, com um pintor de quem gosta muito, que no bairro castiço onde vive, é tratado de senhor António, por gentes a quem, se nota na forma como fala deles, tem afeição. Diz que protegem a sua morada dos curiosos. Vai à mercearia do senhor Cardoso, dedica-se ao trabalho treze horas por dia e folga aos sábados a partir das quatro: “tal qual as sopeiras e os magalas”. Ao domingo volta de novo ao trabalho.
Falou dos amigos Júlio Pomar e José Cardoso Pires. Gosta de ler Céline, Flaubert, Garcia Marquez, Simenon, Philip Roth e Gonçalo M. Tavares.
Citou Oscar Wilde, interpretou Hemingway, falou de Bovary, entristeceu-se com a morte de Paul Newman, “um homem único e de uma enorme bondade”, comoveu-se com as lágrimas e a tristeza de Robert Redford, quando da morte do amigo, que viu numa entrevista na televisão, quando esteve
Falou de muitas, muitas coisas, impossível eu referir todas.
Coça a nuca, coloca as mãos atrás da cabeça ou apoia o queixo na mão, gestos inatos e descontraídos quando fala para nós, mas raramente fixa o olhar nas centenas de pessoas que ali foram para ouvir, pensar e rir com ele. Só nos olha nos olhos, quando lhe fazemos uma pergunta directa, como fez comigo quando o questionei se ele tinha noção do momento em que o livro deixava de ser dele autor, e passava a pertencer a ele próprio, livro.
“Sabe que eu demoro muitíssimo tempo, meses até, para escrever a primeira parte dos meus livros. Escrever é muito difícil. São capítulos e capítulos que escrevo e reescrevo vezes sem conta, passo a limpo e torno a ler. A partir daí, da metade do livro, ele segue o seu caminho sozinho”. E termina com um grande sorriso para mim, como quem diz, entendeu?
É um sedutor e sabe-o bem.
Antes de se despedir de nós, ainda disse, “Só começo um livro, quando tenho a certeza de que não sou capaz de o fazer. É um desafio. Não parto com vantagem nenhuma”.
E enquanto fumava o seu tão apetecido cigarro, autografou-nos os livros que carregávamos numa fila pouco ordenada, por assim dizer.
Acho-lhe piada, gosto-lhe dos disparates, das suas verdades muito próprias, do ar displicente e despreocupado, da vaidade camuflada, dos olhos azuis, da voz uniforme, do rosto sério que de repente se altera para um enorme sorriso. Gosto de discordar dele. Gosto das suas contradições. Gosto dele, pronto.
E o seu sentido de humor apurado? Vão saber dele aqui, à minha companheira de tertúlias. E logo estaremos aqui.