quarta-feira, 29 de abril de 2009

,e (com vírgula antes)


E depois eu andava sempre descalça, sem que nada me magoasse os pés, e vestia roupa larga e leve para poder voar, e pousava nos ramos dos ciprestes, e dormia toda a manhã sem ninguém para me acordar, e almoçava pipocas salgadas, batidos de amoras negras e pizzas de amores-perfeitos, e conseguia ler enquanto dormia, e construía ninhos de alfazema, e soprava bolas de nevoeiro, e escondia-me no buraco sem ozono, e as cerejas é que eram como as conversas, e as melancias nasciam sem pevides, e os bebés andavam sempre ao meu colo, e flutuava sobre nenúfares com motor, e encolhia de tamanho para empurrar as bolas com os escaravelhos, e apanhava bolachas oreo na areia da praia, e fazia corridas com as lagartixas, e os cornetos eram todos de chocolate, e os caramelos não se pegavam aos dentes, e os arranhões não ardiam, e escolhia o final dos filmes, e proibia os cães e os gatos vadios, e abandonava os humanos nas férias, e o ALA contava-me crónicas para eu adormecer, e ninguém escrevia lol, e eu tinha uma colecção de penas raras, e pensava livros com os olhos, e nabos, agriões e courgetes nunca tinham existido, e comprava uma casa de algodão cor-de-rosa, e o guardador de rebanhos era meu vizinho, e o preconceito era mentira, e os animais também mandavam, e o leite de coco não engordava, e afinal valia rir no jogo das estátuas, e escrever era muito fácil, e nadava ao lado dos peixes azuis, e plantava chupas de morango no meu jardim, e tinha caracóis de estimação, e as abelhas não picavam, e as baratas não voavam, e as cobras não eram bífidas, e os avós nunca morriam, e pedia às nuvens que chovessem quente e aos homens que existissem de verdade e aos poetas que mentissem com sinceridade.
E não era?

terça-feira, 28 de abril de 2009

biografias # 3

foto etsy blog - clicar para aumentar

No centro da foto de 'família', sentada no meio das suas meninas, encontra-se a portuguesa Maria Leocádia da Silva Alvarenga, proprietária da mais refinada casa de alterne do estado do Texas.
Viúva de um português rico, aventureiro e mulherengo, que numa das suas viagens ao Canadá, visitando as famosas cataratas do Niagára, se arriscou demais no passeio para impressionar a sua então amante e caiu, partindo para sempre deste mundo, junto com a queda da água para nunca mais ser encontrado.
Maria Leocádia, que o aguardava na sua fazenda em El Paso, recebeu a notícia do seu desaparecimento e pior ainda, que toda a suposta fortuna fora desbastada pelas inúmeras amantes do marido.
Vendeu tudo o que tinha, pagou dívidas, calotes e hipotecas do estupor com quem fora casada e abriu no centro da cidade, o Salão Social e Recreativo: Leocadia Falls.

E da esquerda para a direita temos ...
1ª- Filha adoptiva de fazendeiros do Mississipi, mortos por escravos revoltos, escapou por um triz à chacina, por andar nesse momento a cantarolar perdida no meio dos campos de algodão.
Arranjou trabalho na cidade, cantando em velórios, casamentos e baptizados. As músicas que saíam de dentro dela chegaram aos ouvidos de Leocádia, que logo tratou de lhe oferecer salário dobrado e protecção.
Os clientes mais sensíveis e refinados, perdiam-se de amores por aquela voz rouca e sensual, que aquecia os seus corações, entoando melodias aprendidas entre os negros das plantações, com letras cheias de conotações amorosas e sexuais.
Era ver os homens de Pulquéria Blueswoman, a suplicarem-lhe uma breve nota musical, uma simples frase mal cantada ou mesmo um som vago e mal definido e já os deixava em êxtase total. Nos seus aposentos vivia-se um ambiente de pré Rhytm and Blues.

'Açoites Cantados no Tronco' era o serviço que prestava, com mais sucesso entre os seus clientes.

2ª- Descendente de índios, mendigava esfarrapada pela cidade e em troca de comida, previa o futuro
aos habitantes fazendo leituras em pêlo de búfalo.
Leocádia apanhou-a uma noite a vasculhar no lixo do salão, no beco das traseiras. O seu olho para o negócio, viu naquele rosto exótico um excelente investimento. Recolheu-a, amparou-a ofereceu-lhe protecção e decidiu chamar-lhe Hedviges Arizona.
A índia encantava os clientes, entoando cânticos em dialecto indígena, bamboleando o corpo com danças tribais e contando histórias sobre as antigas crenças do seu povo.
Envolvidos naquele ambiente pagão, mas ao mesmo tempo ignorantes e receosos do poder de toda aquela mística, que não sabiam ser muito bem encenada por Hedviges Arizona, era vê-los agora, pobres colonizadores, prestarem-lhe vassalagem e esquecendo guerras territoriais reduziam-se a meros objectos sexuais.
O fetiche mais requisitado pelos clientes era a 'Escalada ao Totem'.

3ª- Fora criada no coração de uma seita religiosa semi-secreta, no Utah. Fugiu, no mesmo dia em que soube ter sido escolhida para ser a 16ª mulher, do octogenário líder religioso e chefe da sua pequena comunidade.
Entrou no salão de Leocádia, altiva e dominadora, disposta a que jamais algum homem lhe desse ordens.
As exigências que fazia a todos aqueles que requisitassem os seus serviços, eram extremamente rigorosas. Os clientes teriam de jejuar durante quatro dias, construir-lhe um pequeno altar, chamá-la de Zita a Nova Luz e prostrarem-se sempre de joelhos diante de si.

Só assim poderiam subir aos seus aposentos, onde todos os serviços prestados eram realizados num ambiente negro e pesado, carregado de cheiro a incenso e iluminado aqui e ali por uma vela de luz ténue.
O fetiche eleito era 'Ao Encontro do Apocalipse'.

4ª- Descendente directa dos primeiros colonos ingleses do
Massachusetts, exibia um sotaque britânico perfeito. O seu nível cultural era tão alto, que não conseguiu arranjar trabalho em nenhum lado e só Leocádia lhe estendera a mão, alcançando de imediato que ela seria a perdição total, do pequeno grupo de clientes masoquistas do salão.
Aquele restrito número de clientes cowboys e perversos, encontrava-se desejoso de sofrer nas suas mãos todas as injúrias, humilhações e punições, ao som de ordens pronunciadas no inglês mais puro e arcaico, soletrado pela voz de Gertrudes New England.
Gritos irados de stupid cowboys, you smell like a fucking cow, God save our king and not your president e british boys do it better, vinham do seu quarto, satisfazendo as delícias e os desejos dos clientes vaqueiros sado-maso.
A depravação eleita por aqueles genuínos cowboys era, 'Please, send me an Apple Pie'

5ª- Trazia uma única e minúscula pepita de ouro nos bolsos rotos do vestido, quando bateu à porta do salão de Leocádia, pedindo guarida. Viúva de um antigo garimpeiro de Sacramento, foi abandonada à sua sorte sem nada de seu, quando lhe assassinaram o marido numa rixa de ganância provocada pelo mineral brilhante.
Saturada de rios e correntes de água, peneiras e gravilha, escavações e dinamites, que lhe tiraram anos de vida e a obrigaram a uma existência de quase escravatura, Bonifácia Golden Stone era a perita do salão de Leocádia, em extorquir aos clientes pequenas fortunas.
Elaborava jogos eróticos sismológicos, brincadeiras sexuais tectónicas e galhofas de aluvião, que apimentava com um vocabulário técnico da mais pura geologia, deixando-os literalmente petrificados e duros como uma rocha.
'A Grande Corrida ao Minério' era o serviço mais pedido.

Links: biografia #1, biografia #2

quinta-feira, 23 de abril de 2009

dia internacional do livro e dos direitos de autor

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Este é um dos tais dias, que eu comemoro também nos outros trezentos e sessenta e quatro.
Sou uma leitora exagerada, desde que o José Mauro de Vasconcelos entrou na minha vida e leio muitos e muitos livros em simultâneo. Sempre o fiz e não me traz qualquer espécie de confusão ou balbúrdia ao espírito, aliás, não concebo ler de outra forma. É um hábito enraizado que já não tem remédio, esta minha leitura orgíaca, se assim lhe quiserem chamar.
Da fotografia de cima, só iniciei agora o prémio Leya, "O Rastro do Jaguar", do Murilo Carvalho e o "Leite Derramado", do Chico, como sabem acabadinho de chegar do Rio. Todos os outros livros estão praticamente no final e já outra pilha ainda maior, se encontra a postos. E se vocês vissem as minhas listas de livros para comprar ...
Sim, sim é isso mesmo o que estão a pensar, invisto fortunas em livros. Não gasto dinheiro, invisto-o. Opções.
Ah e sapatos. Também invisto muito em sapatos.

E vocês? O que estão a ler?


Estes cinco livros de cima, são os fixos, os meus companheiros eternos, rotineiros e nostálgicos de mesinha de cabeceira. Pobres folhas, odeiam-me de morte. A mim e à minha lapiseira em riste.

Não sou apologista de que o importante é ler e que para isso, qualquer coisa serve. Assim como defendo, que há boa e má literatura, independentemente de se gostar ou não dela e não ao contrário, como muitos afirmam. A qualidade literária de um livro, nada tem a ver com o nosso gosto pessoal. Ela existirá sempre, mesmo que só haja uma única pessoa a gostar desse livro e o resto do mundo a detestá-lo.
Que não se confunda excelência com desfrute.
A Literatura é o principal veículo de qualidade, para a expansão de uma língua. Não a fala, a televisão, a rádio, a imprensa ou os computadores.
Se não fosse a Literatura
, a língua por si só não teria qualquer valor, tornar-se-ia numa série de letras moribundas e acabaria por morrer esquecida, sem direito a funeral.
É a Literatura que perpétua a língua e lhe dá reputação.


quarta-feira, 22 de abril de 2009

nos meus textos


Depois de um dia estafante, sentei-me aqui a pensar no que iria escrever. O cansaço era tanto, que não tinha qualquer disposição para me debruçar sobre um tema, pensar no início, desenvolver, depois divagar e inventar, preparar uma conclusão, escolher a fotografia e o pior, rever tudo à cata de possíveis erros, mau português, frases confusas, texto palha e evitar ao máximo para não fazer quatro coisas:

- escrever uma ',' (vírgula) antes e depois de um 'e'; *
- abusar dos 'que';
- colocar a torto e a direito ',' (vírgulas);
- utilizar '!' a não ser unicamente como excepção;

Preconceito meu? Talvez.
E vocês? Quando escrevem um texto, qual é o 'erro' (exemplo concreto) que têm sempre atenção de não cometer?

* exemplo: 'sentei-me, comi um bife grelhado e, enquanto olhava...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

sabor a sossego

foto blomsterverkstad

Era a nova dona daquela velha casa e da antiga drogaria do rés-do chão, que toda a vida nos vendera os mais diversos tipos de produtos. Mas só a conheci, quando abriu a boutique das flores.
A nostalgia da velha loja do senhor João, depressa foi substituída pela curiosidade de admirarmos a inusitada montra da semana.
A harmonia era perfeita, nada morria ou murchava, tudo se renovava naquela loja. Quem passava por lá todos os dias, depressa se apercebeu que não existia qualquer tipo de rivalidade entre as várias espécies ou desdém entre as flores.
Todas as semanas eu lá entrava e não resistia em trazer um ramo novo.
Não havia disputa entre os gladíolos e as estrelícias, nem picardias de imagem com as margaridas e as calêndulas, ou altivez e olhares de cima abaixo das rosas, para as flores rasteiras.
Quando lhe perguntei o que tinha feito com o castiço quintal das traseiras, respondeu-me, para o mês que vem já vais saber.
E foi o que aconteceu, em Fevereiro começou a vender na loja pequenos vasos de produtos hortícolas e tudo quanto era hortaliça, convivia ali de forma pacífica.
Nunca as alfaces, os feijões, os tomates-cereja ou as favas-anãs, pretenderam distinguir-se das demais parceiras de cultivo. E até as abóboras, sempre com aquela mania de nobre superioridade, só porque se transformam em carruagens para princesas, jamais tiveram qualquer tipo de peneiras.
Diz quem ali mora paredes meias, que ouve de noite muitas vozes sussurradas, timbres distintos e até risadas dissimuladas. E minha senhora, o barulho vem todo do quintal das traseiras!
E eu acredito, claro.
Não sei que tipo de fenómeno se passa na loja dela, o que é facto é que a venda dos legumes foi também um sucesso. E até eu, que em minha casa nem a salsa mais vulgar se aguenta, me vi a braços com vasos de alecrim, coentros, hortelã e uma ervilheira, imagine-se!
Já somos amigas há muito tempo e noutro dia avisou-me, temos surpresa para meados de Abril.
E na segunda-feira, apareceram por lá os chás de violeta contra a enxaqueca, o bolo de limão com sementes de papoila, para dar brilho à pele do rosto, as beringelas-bebé gratinadas, salpicadas de raspa de toranja para limpar o intestino, tisana de jacinto com duas gotas de uva branca, para sorrirmos mais vezes, tarte de rosa com calda de espinhos, anti-arrelias, queques de orquídea branca, servidos em folha de mandioca para despertar a paixão e pãezinhos de hibisco com doce de calêndula, para realizar pequenos desejos.
Fiquei embasbacada, oh meu Deus, mas o que é que andaste a fazer todo o fim-de-semana?
Fiz mais um bocado da minha tranquilidade, respondeu e voltando-me as costas, ainda a vi de lado a piscar o olho a uma camélia branca.

Juro que vi!


sexta-feira, 17 de abril de 2009

vírus* num blog sério e familiar #3

hugh jackman

Após a polémica têxtil na loja do cidadão de Faro, foi aprovado por unanimidade e com efeitos imediatos o novo funcionário-tipo, a ser admitido em todas as repartições públicas deste país.
Esclarece-se também, que não foi encontrado nos manuais de atendimento, qualquer item contra:
cabelo comprido;
olhar mortífero;
tom de pele com muita saúde;
barba de quatro dias.


Bom fim-de-semana!
(
agradeço que não arranhem ninguém, enquanto permanecerem neste blog)


* praze the Lord! (que é como quem diz: benzóDeus!)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

incumbências

foto dezeen

Costumava pontapear, literalmente, com a ponta dos pés as sombras que se atravessavam no seu passeio e que podiam manchar-lhe o polido da calçada.
Incomodavam-na como poucas coisas na vida, as silhuetas que se interpunham entre ela e a luz, que se recusavam a avançar e que subsistiam à custa do que alguém, piedosamente deixava sobrar para elas.
Mas não nasceu assim, resistente. Fez-se desta forma por opção.
Tudo o queria era ser diferente das outras, daquelas que em tempos sonharam ... e muito.
Mas a razão porque sonhavam, foi a mesma que as impediu de o fazer; o precisar, numa dada altura da vida permanecerem mais presas ao chão.

E com os anos, a desilusão de não viverem os seus sonhos fez com que parassem de os sonhar.
Faltou-lhes a inconsciência dos loucos, o atrevimento dos ousados, a agonia dos génios e a bravura dos intrépidos.
A vida, que as continuou a enredar com baraços de açoites e insistia em vigiá-las de longe, foram-na elas logrando com atitudes terrenas de delírio consciente, tresvarios, exaltações e vibrares de coração.
E disfarçavam para os outros e para si próprias, momentos de felicidade.
Tudo menos sonhar.

Poucas vezes souberam, que há instantes onde da troca de palavras, do cruzar de olhares, da descoberta de cumplicidades, de apertos de mão com um estranho, de encontros breves de almas gémeas e de se fazer o que se diz, se lucram os dias da vida toda!
E que esses dias podem marcar anos. E esses minutos durar horas. E serem únicos. E os melhores de todos.
Momentos que se guardam em segredo e se colocam numa pausa sem limites e sem medidas. E que se pode começar outra vez.
Muitas vezes. Tantas. As que se quiser.

Assustadora sina aquela, de terem ido contra o que mais desejaram, contra aquilo que lhes gritou para irem.
Para irem ...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

amor é ...


Dora nascera gorda, crescera gorda, adolescera gorda e ficara para sempre gorda. Rapariga optimista, alegre e bem disposta, já se habituara com essa realidade e convivia bem com o seu físico.
Numa das suas habituais incursões a uma conhecida cadeia de fast food, decorada a encarnado sangue, que como já é sabido trata-se da cor que excita o apetite, conheceu entre os frascos de molho brilhante, o gás da cola e a gordura do hamburguer, aquele que viria a ser o amor da sua vida.
Chamava-se Rufino, trabalhava como caixa do restaurante desde que este abrira e era o único funcionário com contrato efectivo, pois nem num bife untado, aquela alminha jamais havia tocado e o gerente levara aquilo como uma verdadeira atitude com vista ao lucro.
O que não sabiam é que Rufino era vegan e por isso, incapaz de tocar em qualquer produto de origem animal. Ficava-se pelas insípidas saladinhas, bebia um copo de água e voltava para a registadora. Impoluto, aquele espírito.
Nunca houve explicação para a paixão súbita e visceral que nasceu imediatamente ali, entre a troca do nervoso talão da despesa e a consistente nota de vinte euros.
Facto é, que aqueles dois jovens foram atraídos como ímanes de tal maneira, que nem Newton saberia explicar. E nunca mais se largaram.
Namoraram intensamente durante um ano, recheado de trocas e juras, versos, sms's e emails de amor, passeios no shopping e refeições no fast food encarnado.
O problema da comida nunca chegou a sê-lo, verdade seja dita, visto que Dora comia sempre tudo e de tudo e Rufino, nada de nada.
Quando decidiram casar, Rufino fez-lhe a surpresa de convidar o seu amigo sueco, Jan-Olov um conhecido criador de moda, para que desenhasse o enorme e difícil vestido de noiva, para a sua superabundante-amada Dora.
Ela ficou delirante, pois sentia-se perfeitamente à vontade com Jan-Olov, o que lhe permitia fazer todo o tipo de pedidos exuberantes, muito próprios do seu carácter efusivo.
Mas... eis que tudo se desmoronou nas vésperas da boda. Depois das análises e exames da praxe, a que todos os nubentes responsáveis devem ser sujeitos, Dora ficou a saber que sofria de uma doença rara e fatal, não para si, mas sim mas para Rufino. Tinha o enorme e científico nome de: mantimentus.contra.vegan.bacchteris.phatalis.mortis. Resumindo, se a Dora lhe tocasse com um dedo que fosse, o rapaz ia desta para melhor.
Ela chorava desesperada por perder o amor da sua vida, mas não havia mais nada a fazer senão terminar aquela relação; o médico fora irredutível quanto à inevitabilidade das consequências e Rufino apercebendo-se do sentimento de desonra da sua amada, aguentou-se firme e hirto e decidiu resolver a situação à sua maneira.
Depois de colocado um anúncio no jornal, onde vendiam o vestido de noiva por estrear, Dora partiu para parte incerta.
Rufino reuniu toda a família e os amigos mais chegados no seu apartamento, recebendo-os demasiado excitado para o seu temperamento e em trajes desapropriados: havaianas coloridas, short de licra brilhante e camisola de alças justinha, a vincar-lhe a magreza do tórax pobremente desenvolvido do veganismo.

Ria nervosamente, enquanto a melena loura, trabalhada várias horas para dar credibilidade à sua explicação, lhe caía brincalhona para os olhos.
Acompanhado de alguns trejeitos exagerados, mas convincentemente ensaiados, despejou a notícia de um golpe só, enquanto limava uma unha falhada que insistia em deixar puxões na licra inusitada da sua vestimenta.
"Durante as várias provas do vestido de noiva da Dora, eu e o Jan-Olov descobrimos que nos amávamos loucamente e já não há mais casamento para ninguém".

E assim termina mais um documentário do Canal Relíquias Históricas, apresentado-vos aquele que se julga ter sido, o primeiro cavalheiro conhecido do século XXI.

Adenda: Versão para chorar, aqui.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

corín tellado

foto corín tellado
A Maria dos Anjos foi nossa empregada durante muitos anos. Chegou até nós com dezasseis ou dezassete anos, vinda da 'terra' para Lisboa. Da terra dela, que eu nunca soube qual era.
Dizia muitas vezes 'valhameDeusmeninatejaquietinhasenãodigoàmãezinha'; assim, tudo pegado e todos ríamos com ela.
Era pouco mais velha que a minha irmã, que a ensinou a ler e a aperfeiçoar a letra tremida e irregular. Adorou!
Agora que já consegues ler melhor, Maria dos Anjos, vamos à papelaria comprar uma revista e escolhes o que quiseres para ti. A sério, menina?
Claro que é a sério, Maria dos Anjos.
Eu trouxe a minha revista do Mandrake, a minha irmã a Burda, o meu pai o maço de tabaco Porto e o jornal e a Maria dos Anjos, apaixonou-se pela prateleira onde estavam dispostos e impecavelmente alinhados, os pequenos livros de romances de amor a cordel, da Corín Tellado.
Depois desse dia, Maria dos Anjos gastava o que lhe sobrava do ordenado, do qual enviava uma parte para a mãe que vivia ainda na 'terra', em Corín Tellado Já sabíamos que tinha terminado de ler o último dos seus livrinhos, quando vagueava pela casa de olhar perdido, sorriso disfarçado e se esquecia de nos pregar raspanetes e fazer queixas à nossa mãezinha.
Escrevia cartas de amor ao noivo, de fazer inveja a qualquer heroína dos seus romances melados, dizia-nos a minha irmã depois de fazer a revisão, a pedido da Maria dos Anjos.
Ah conta lá, conta lá o que ela escreve ao Alfredo. Nem pensem!
E nunca nos contou.
Numa das nossas visitas a Badajoz, o meu pai viu que estava no cinema um filme da Corín Tellado, "Tengo que Abandonarte"
. Comprou dois bilhetes, um para a Maria dos Anjos e outro para a minha mãe, que lá fez o sacrifício de lhe servir como tradutora. A minha irmã bem que pediu para ir também, mas o filme era para maiores de dezoito.
Quando duas horas depoise, a Maria dos Anjos entrou nas Galerias Preciados, vinha lavada em lágrimas, de braço dado com a minha mãe, que a muito custo punha um semblante bastante sério, ouvindo-a a repetir sem parar, 'aisenhoravalhameDeusquecoisamaisboniaoamordaquelesdois'.
Uns anos mais tarde, partiu de novo para a 'terra' para se casar com o Alfredo. Oferecemos-lhe uma caixa cheia de Corín Tellado e ainda hoje tenho dúvidas, se em Santa Apolónia ela chorou mais com pena de nos deixar ou da emoção, quando viu o presente das patroinhas.

A escritora espanhola Corín Tellado morreu no sábado. Escreveu mais de quatro mil livros e vendeu mais de quatrocentos milhões de exemplares. Em Espanha, só Cervantes terá sido mais lido do que ela.
E eu lembrei-me de imediato da nossa querida Maria dos Anjos. Que será feito dela?

quinta-feira, 9 de abril de 2009

[16] ´tou no ir...de fim de semana

foto liberty post blog
É só meter na mala as havaianas, o biquíni, o protector solar, as calças largas e a túnica comprida, o chapéu, os óculos de sol, a máquina fotográfica, os três livros, o iPod, o bloco e a lapiseira, um casaco para o frio do barlavento, o marido e a filha e uma grande vontade de me praiar, esplanar, planar e porque não vadiar ... seja!
Lá pela hora do almoço, parto para aqui.

Feliz Páscoa para todos.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

leite derramado

foto Babá, livraria da travessa-leblon

Mal li a notícia, de que este senhor ia lançar o seu último livro, "Leite Derramado", em todo o Brasil no dia 28 de Março, fiquei em pulgas. Eu já tinha adorado ler "Budapeste", ouvir aqui.
E em Portugal, quando será editado? Ah, talvez no fim do ano. Credo, mas ainda faltam nove meses, isso é quase uma gravidez!
É que o Chico, não tem só uma voz maravilhosa, não tem só um timbre de fazer estremecer as pedras do calçadão, não escreve só letras de sonho, não compõe só músicas eternas, não é só dono de uns olhos sem definição de azul. Não.
O Chico escreve, canta e compõe, com uma delicadeza e com uma sensibilidade sobre nós mulheres, que não é para qualquer um.
E o mulherio apaixona-se, o que é bastante compreensível.
Eis que, no meio da minha angústia sem tamanho, a minha querida sobrinha Babá, me comunica que vai de férias para o Rio, com regresso a Portugal dois dias depois do lançamento do livro nas livrarias.

sobre o livro, aqui

E cá está ele vizinhança, ainda por ler mas já folheado e cheirado e manuseado e assinado. E meuzinho e tudo.
Pronto vá lá, eu sou simpática e até vos dou a ouvir um bocadinho do meu Chico, lendo as preliminares do "Leite Derramado", aqui.

E você Nina e você Luz, já têm? E tu, já o compraste Pitanga?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

escrever com morfeu

foto apartment therapy main

Começou a ser difícil escrever enquanto sonhava.
A princípio, uma palavra, uma intenção ou pensamento e até uma frase curta, eu conseguia guardar num canto da memória, até despertar pela manhã.
Trazia-a depois do esconderijo que a protegera durante a noite, passava-a a limpo para o bloco de notas breves e ali ficaria impressa e segura, até que algo me fizesse pensar nela para a reescrever, mas desta vez já acordada.
Acontece, que há noites de ventura em que a minha cabeça adormecida escreve sem parar; cria personagens, baptiza-as com nomes inusitados, cria-lhes biografias, dá-lhes vida e imagina-lhes enredos.
Como se não bastasse, assenta datas, toma notas, sublinha, desenha setas e asteriscos e ordena a paginação em folhas imaginárias, que nada têm de palpável.
É no entanto um facto incontestável, que eu folheio estas páginas de manhã em pensamento, disso não tenho dúvida. Mas é também verdade que quando acordo, perante a falta de um registo físico, perco-me no enredo sonhado, esqueço-me dos nomes escolhidos, não encontro os apontamentos e as notas, deixados durante o sono no canto da folha e com muita pena minha a história perde-se.
Então, numa destas noites decidi durante o meu sonho, criar ao lado da minha cama uma mesa branca bem iluminada, onde apoiei o meu pc portátil imune a vírus, passwords e sonambulismos.
Adormecida, deslizo agora da altura do meu colchão, apoio a ponta dos pés no quente do tapete e despejo as histórias sonhadas, que me aparecem escritas na cabeça que segue desta vez mais descansada.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

vírus* num blog sério e familiar #2

patrick dempsey

Bom fim-de-semana!
(agradeço que deixem os Ray Ban intactos)

*ah bom! 'Tava a ver que não havia mais.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

arriscar

foto arts&ghosts

Duas irmãs, gémeas siamesas, unidas apenas por um fio de cabelo, caminhavam sempre juntas, tomando a mesma direcção e sentido, rumo definido sem sobressaltos, apesar da primeira se chamar Frente e a segunda, Atrás.
Uma seguindo a outra, mantinham-se alinhadas no percurso imposto sem grandes alternativas de fuga, desvios ou mudança de orientação. Nunca houve dúvidas, hesitações ou paragens. O caminho era aquele e assim se cumpriria.
Quando a cabeleireira distraída, lhes cortou a ténue ligação capilar, perderam-se uma da outra. E ambas de toda a gente. Nunca mais ninguém as viu.
Reza a lenda, que se fartaram de inverter o sentido, mudaram constantemente de direcção, contrariaram linhas perpendiculares e paralelas, encurvaram rectas, desistiram de alinhamentos, desviaram-se de vias com saídas fáceis e em várias ocasiões, apagaram as luzes ao fim dos túneis, mas chegaram onde queriam, de todas as vezes que se fizeram à vida.
Agradeceram sempre o corte de cabelo, que lhes inibira a ousadia, impedira a aventura e lhes castrara a surpresa da viagem. Se bem que por caminhos rectos, sem obstáculos ou imprevistos, chegariam sempre intactas, amparadas pela certeza, ao fim de qualquer trajecto.
Mas a verdade é que no risco do incerto, em algum sacrifício e na luta contra as adversidades, os objectivos alcançados souberam-lhes sempre muito melhor.
Souberam a si.