quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

feliz natal e um grande 2010...

... para todo o meu blogobairro querido!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

crónicas de graça # 6

O Natal

Ando tão atarefada e azafamada, que nem tempo tenho conseguido arranjar para a minha visita ao Ares e contar-vos das novidades aqui do bairro. E essa lufa-lufa toda é porquê menina Amelinha, perguntam-me vocês?
Por causa do Natal!
Dos aprontamentos. Das compras no supermercado. Das decorações. Da ajuda ao senhor padre Hipólito. Do apoio às famílias necessitadas do bairro. Das rifas da paróquia. Da compra do pinheiro. Da escolha do bacalhau, das couves e do grão. Do musgo para o Menino. Dos postais de boas festas. Dos preparativos para receber a família do Norte e a da Beira e a do Sul e ainda os compadres das ilhas. Dos fritos para o Onofre padeiro. Dos fritos para fora. Das mantinhas para os cães e os gatos do canil. Da sopa dos pobres.
Pois é, eu sou das tais que vivem esta época intensamente; com uma grande alegria. Apesar da falta que o meu Alfredo me faz, já o sabem. Excepto com aqueles que por razão de força maior, como a experiência de uma fatalidade, não vivem bem esta quadra, não tenho a mínima pachorra para os abutres do Natal. Credo! Fechem-se em casa.
Ora embirram com as compras, ora com os doces, ora com a música, ora com as luzes, ora com o trânsito, ora com o pai natal, ora com os frutos secos, ora com o bolo rainha. Livra!
Oh minha gente, embirrem lá mais para o início de Janeiro, que até é um mês estúpido e tudo, e deixem o Natal sossegado. Oh valha-me Deus.
Que há muita desgraça no mundo, muitas crianças com fome, muitas famílias sem tecto, muitas pessoas sozinhas, muitas guerras sem fim. Pois há. Aqui no bairro também, mas não aparecem só no Natal, estão por cá todo o ano. E quanto a mudar o mundo, nada posso fazer. Posso e devo consertar o que me rodeia, na esperança que se repercuta nos outros e assim por diante. Tipo efeito dominó. Se todos plantarmos uma flor no quintal, o vizinho imita-nos e todos os quintais ficarão mais bonitos. Agora, aquela maniazinha de virem só nesta época, chamar a atenção para os problemas do planeta, encanita-me. Mas os problemas não duram todo o ano? Pois se não estão satisfeitos, tentem mudar as coisas, ou não é?

Bom, adiante.
A minha azáfama começa logo em finais de Outubro. A família espalhada pelos quatro cantos do país, aterra toda aqui no bairro a partir do dia 22, e há que acomodar esta catrefada de gente na minha casa. Fazer camas, baixar divãs, pedir colchões emprestados, escolher toalhas, cobertores e lençóis. Enfim, um cansaço mas que muito me agrada, não fosse esta a festa da família.
São os meus pais de Mirandela, mais os meus irmãos e as mulheres e a filharada toda, que vêm de lá com o cabrito, o pão, as nabiças e o melhor azeite do mundo; os primos de Gouveia que me trazem as perdizes à moda lá da terra, mais as trutas abafadas; a minha cunhada de Porto Santo, com o bolo de mel, o licor de amoras e os fartos de batata-doce; os meus tios de Serpa, carregando cabazes de papos-de-anjo, a encharcada, a garoupa para a canja, o tinto alentejano e as azeitonas; e finalmente os meus compadres marafados, com o rico polvo, duas caixas de lingueirão e o folar doce do Natal. Aqui a Amelinha, contribui com o bacalhau da rua do Arsenal. Não falho um ano.
Depois, há que dar uma mãozinha ao padre Hipólito, no auxílio às famílias mais pobres do bairro, que em regra têm também muitas crianças. Este ano, calhou-me a partilha da minha ceia de Natal com a família Pereira. Têm cinco filhos, o pai está desempregado e a mãe faz limpezas aqui pelo bairro. Muito humildes, mas gente muito honrada. Portanto, mais pessoal para sentar à mesa. A Zeneide manicure, aquela rapariga moderna que me elucidou acerca dos sonhos góticos, é que me deu a ideia de eu fazer um jantar rolante ou volante, ou andante, ou lá como aquilo se chama. Girante, é isso: um jantar girante. Chic, não acham?
Também adoro aquela parte dos presentes. Não posso gastar muito, já se vê, mas de um giro pelas lojas da baixa, é que eu não abro mão. Era só o que me faltava, falhar com as compras de Natal.
E para quem não anda muito abonado como eu, aconselho ali o território que vai dos Fanqueiros ao Martim Moniz. E não se ponham com caganças de lojas finas, porque a zona de que vos falo é muito catita. Ele é pijamas de seda indiana, dez pares de peúgas a 5€, guarda-chuvas coloridos, caixas de jóias chinesas pintadas à mão, com desenhos de pagodes dourados, despertadores com a música do Pingo-Doce, televisões, rádios, leitores de dvd e consolas, de uma marca muito boa, mas que agora não me lembro o nome porque está em chinês,
carteiras de marca, porta-chaves de pele genuína, pauzinhos de incenso e fatos de treino de nylon, muito jeitosos.

E finalmente, os fritos. Os famosos fritos de Natal, pelos quais sou afamada aqui e nos arredores. Todos os anos despacho para fora, quilos e quilos de encomendas que me começam a chegar logo em Novembro.
São os sonhos de abóbora, de cenoura, de maçã, de gila e este ano inovei com os de banana: um sucesso! Sou também a melhor nas fatias douradas, pois faço-as com o pão que o meu rico pai me envia lá de Trás-os-Montes. Ficam assim ensopadinhas, ensopadinhas. E os coscorões? Querem lá ver coscorões mais amarelos e estaladiços que os meus? Isso é que era bom. Até o Onofre, o padeiro esquisitinho, mos encomendou este ano porque os dele tinham a textura de trapo. Só vos digo que não há azevias de grão como aqui as da Amelinha. Grão-de-bico! Do bom e verdadeiro, que na comida eu não sou cá mulher de fazer poupanças.

E é tudo amassadinho com as mãos. E não se me estala o verniz, não senhora. Horas e horas de vira e revira, amassa, esmurra, bate, volta e torna a voltar. Quero cá essas modernices de Bimbes e máquinas de pão e mainãoseioquê!
E também não me venham cá com conversas de comer com moderação, um bocadinho ali e um bocadinho aqui, e mais o cuidado com a linha, e mais a boca cosida, e mais a figura e o raio das dietas. Querem lá ver coisa mais disparatada que esta, de fazer restrições na alimentação durante o Natal? É com cada moda que inventam hoje em dia.
Bem, deixa-me lá ir. Ainda tenho duas mantinhas para acabar de tricotar e levar ao gatil, três dúzias de filhoses de abóbora, encomendadas pela Lurdinhas da mercearia, não posso faltar à missa das nove, levar dois aquecedores a óleo ao lar da paróquia, ajudar a vizinha do segundo direito a colocar a estrela no topo do pinheiro e ainda, dar um saltinho à loja do chinês para comprar mais papel de embrulho. Tanta coisa ainda para aprontar.
Mas que o meu jantar
girante, vai fazer furor no Natal cá do bairro, ai isso vai.

E o senhor Carlos, o que me diz desta época?
Ass: Amelinha (o meu alter-ego)

Crónicas de Graça #1, #2, #3, #4, #5.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

pois...o Natal


Se vocês soubessem, o que eu já comi de doces de Natal...
Uma pecadora. É o que eu sou.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

no confessionário aos 40 #5


Este sábado fomos maridar para a esplanada preferida.
Também por lá paravam o sol obra-prima, aquele sol branco-inverno, picante e fundo, acalentador da nossa pele, nutriente; as ondas-mulher que barafustavam altas e espumosas, desde o fundo do horizonte prata até à praia, onde decidiram estalar o seu sal na areia amarelo-palha; aves marinhas de bico cor-de-laranja e corpo preto, riscado de branco meigo; duas dezenas de apaixonados da água gélida, pontinhos negros, formigas laboriosas, barbatanas de tubarão, que saltavam para o corpo das pranchas, dançando sobre elas sem parar, enquanto houvesse pista para andar.

O mar nunca é tão mar, como quando se funde com o sol do frio-norte.

amado, foto minha

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

vírus* num blog sério e familiar #9

foto simon baker

Bom fim-de-semana!
(Reflictam meninas. Estamos na época apropriada.
Mas com conta, peso e medida. Nada de depenarem as asinhas do anjinho, por favor).

* la, la, la, la, la, la, driving home for christmas, la, la, la, la, la, la...
(Post agendado, sigo sem net).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

sopas de letras portuguesas # 1


Texto inspirado em: "Não venhas tarde!"

Dizes me tu com carinho,
Sem nunca fazer alarde
Do que me pedes, baixinho
"Não venhas tarde!",
E eu peço a Deus que no fim
Teu coração ainda guarde
Um pouco de amor por mim.

Tu sabes bem
Que eu vou p'ra outra mulher,
Que ela me prende também,
Que eu só faço o que ela quer,
Tu estás sentindo
Que te minto e sou cobarde,
Mas sabes dizer, sorrindo,
"Meu amor, não venhas tarde!"

E blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

Quando era miúda, este fado do Carlos Ramos ouvia-se muito na rádio - ou melhor, na telefonia.
Sempre gostei de fado, é a música da minha terra, mas a este detestava-o - e sigo a detestar.
Primeiro e antes de compreender alguma parte da letra, era a voz do homem que me incomodava: arrastada, falsa melosa, quase suplicante.
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
Depois, na idade da compreensão passei a antipatizar com o protagonista da história: mas ele tem uma amante? e é casado? e vai ter com outra na cara da legítima? e ainda diz que ela sofre de ciúmes?
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
E finalmente, a raiva a esta letra personificou-se na traída: mas a parva ainda lhe diz para ele não vir tarde? e com carinho? sem fazer alarde? sem azedume? e ainda se vai despedir à janela? oh mãe, mas como é que a mulher atura um marido daqueles?
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.
Mas, coitada da desgraçada. Só alguns anos mais tarde entendi que era uma situação comum à época. De educação. De formação. De lei, até. Mulheres em casa com os filhos. Cumpridoras e pacatas. Eles na rua e onde bem lhes apetecesse. Cumpridores também. Mas já não tão pacatos.
Depois, a minha mãe, que felizmente sempre foi muito acima do seu tempo, contou-me que só em 1966, é que a mulher casada teve autorização do marido, para exercer uma profissão liberal ou na função pública. A palavra autorização, é fantástica, não é? Mas alto lá, ele ainda tinha o privilégio de poder denunciar o contrato de trabalho da mulher.
Nesse mesmo ano, a mulher casada alcançou também o direito de ser detentora de património próprio e de poder movimentar contas bancárias. Uma sortuda, já podia ter mealheiro e tudo!
Só em 1969 é permitido à mulher, viajar sem autorização do marido. Influências da ida à lua, só pode!
Até 1975, era multado aquele marido que assassinasse a sua mulher por razões de adultério. Ela ia presa. E upa, upa!
Em 1976, o marido perde o direito de violar a correspondência da mulher. As despesas da capelista, da mercearia e a conta mensal do talho...
Só em 1978, o marido perde o título de "chefe de família".
E eu de boca aberta com o nonsense da coisa.
A minha mãe olhava para o meu pai e riam-se.

Assim, não é de estranhar que este detestável fado, tenha sido à época, cantado e recantado vezes sem fim.

Oh Gi, mulher laboriosa com as letras, tu reescreve-me aí estes execráveis versos e desencanita-me o fado, menina!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

aqui vou eu # 2

P'ra lá...


e p'ra cá


E no dia 10, vou estar aqui e ali.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

crónicas de graça # 5

O Alfacinha

Parece que o único registo existente para a origem da palavra alfacinha, que designa há muito os lisboetas, tem explicação nas colinas da Lisboa primitiva onde abundavam "plantas hortenses utilizadas na culinária, na perfumaria e na medicina": as alfaces.
Alface vem do árabe e foram os nossos avós mouros, os responsáveis pelo cultivo da planta quando da sua ocupação da Península Ibérica - Al-Hassa.
Há quem fale também de um cerco que a cidade sofreu e que mais não havia para comer, do que alfaces.
Dizia também, Oliveira Marques, que a Lisboa burguesa de finais do século XIX, tinha o costume de nas domingueiras tardes de calor citadino, se reunir em grandes almoçaradas pelas muitas hortas dos arredores de Lisboa. O típico peixe frito era acompanhado, ao que parece, com astronómicas quantidades de salada de alface. Quem vinha de fora, achava tudo aquilo tão pitoresco, que passou de uma moda estranhada a caricaturada.
Eu sou alfacinha de gema. Ali do meu Chiado, logo na sua primeira esquina, a da rua Serpa Pinto.
Os alfacinhas, como tudo na cidade, vêm sofrendo transformações. Não pretendo nenhum relatório, vou falar apenas dos que me lembro; dos do meu tempo, seja ele qual for.
Recordo-me de muitos géneros de alfacinhas. Não havia somente o alfacinha típico, que a maioria fala e conhece a fama.
Aquele bairrista que esfregava o olho mais rápido que o diabo, encostado estrategicamente nas esquinas da avenida, donde atirava piropos às criadas fardadas que passeavam os meninos das casas ricas. Os empolgados aficionados, organizadores dos bailes dos santos populares, com manjericos, flores de papel com quadras populares, alcachofras queimadas à janela, molhos de alfazema e rouxinóis de barro que apitavam na boca das crianças por esta altura, em toda a cidade. Os alfacinhas que discutiam com a varina, o preço do goraz, da posta de pescada e da petinga para o gato. Os que enfeitavam as varandas com vasos cheirosos de sardinheiras encarnadas, que estendiam os tapetes a arejar nos varandins de ferro, que penduravam a gaiola do canário no exterior, que traziam o grelhador para a rua e assavam a sardinha, o bacalhau e o frango assado. O alfacinha malandro e estroina, biscateiro e calão que trazia sempre uma história nova, para enganar o primeiro que encontrasse ao caminho. O fadista marialva e boémio. O alfacinha que se não fosse benfiquista, não era bom chefe de família.

bairro estrella d'ouro - graça, foto minha

Recordo também muitos outros alfacinhas.
Na entrada do ano, estes alfacinhas compravam o Borda de Água a fim de consultar as festas, os dias dos santos e os feriados sem domingo. Passeavam no Campo Grande, onde se alugavam barcos e bicicletas. Desciam a Avenida em família. Paravam nos Restaurados à conversa. As salas de espectáculos esgotavam e usava-se a palavra matiné para o cinema, o teatro e tardes de dança.
Alfacinhas que lanchavam na concorrida Baixa e faziam refeições tardias, nos muitos restaurantes e cervejarias abertas até desoras. Sem problemas.
Cruzavam-se alfacinhas anónimos, com alfacinhas poetas alfacinhas músicos, alfacinhas actores, alfacinhas atletas, alfacinhas escritores. E acenava-se com a cabeça, num cumprimento educado.
Alfacinhas que enchiam espaços tão distintos como os cafés e esplanadas, livrarias, retrosarias, casas de discos, padarias, jardins, drogarias, hortos, mercearias, jardim zoológico, miradouros, o castelo. Esgotavam-se as ruas.
As alfacinhas e as filhas iam à modista, à capelista e subiam aos grandes armazéns do Chiado e eles, engraxavam os sapatos sussurrando politiquices baixinho.
As empregadas das lojas tinham nome próprio, as vizinhas raminhos de salsa e as caras dos motoristas de táxi, não nos eram estranhas de todo.
Lisboeta. Lisboano. Lisboês. Lisbonense. Lisbonês. Olisiponense. Lisiponense. Lisbonino. Alfacinha.

Alfacinha consagrado por Garrett nas suas Viagens, capítulo VII: "Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a Rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare".


almeida garrett-avenida da liberdade, foto minha


E o tripeiro, meu parceiro, é mesmo verdade que o nome oficial nasce de uma revista editada em 1908, ou tem a ver com a gastronomia, ou ainda com aquela história das invasões napoleónicas?

Crónicas de Graça #1, #2, #3, #4

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

parasimpattias #2


Exercício: Um objecto acompanha desde o início do casamento, a vida conjugal de um casal.
Esta é a sua visão da história.

Sou um garboso dálmata de louça luzidia. Imponente e majestático. De porte altivo, ocupando um lugar de destaque na residência dos meus donos, embora os tempos áureos do meu passado, nada tenham a ver com a situação que vivo presentemente.
Acabadinho de sair do forno, fui comprado ainda cachorro por um casalinho de apaixonados, recém-casados. Ai amorzinho que peça mais linda! Ai que ficava tão bem na nossa entrada! Ai que brilha como os teus olhos! Ai que me fazia tão feliz se o levássemos! Ai mais não sei o quê! Ai mais não sei que mais.
Eram assim, a Mariline e o Ismael. Amorzinhos, beijinhos, festinhas, meiguices, pieguices, lambuzices e outras parvoíces. Fiquei um pouco enjoado, confesso. Até para mim, um cachorrinho que adora lambidelas, aquela peganhice toda me parecia um exagero. Mas lá fui. Confiante que de tanto carinho, algum haveria de sobrar para mim. E não me enganei.
Fui colocado no hall, defronte para a porta da entrada, logo ao lado de um belo móvel sapateira, de carvalho polido e ferragens douradas, que faziam clara concorrência ao meu brilho natural.
A minha enigmática postura, impunha-se naquele hall, como um general na frente das suas tropas e espalhava-se por toda a casa. Ninguém me ficava indiferente. Era carismático e possuía uma imagem envolvente, como o amor daqueles dois.
Eu sou um dálmata de nível, sóbrio e com um certo pudor, por isso não me vou pôr aqui a relatar a intimidade dos meus donos. Mas que subiam paredes, ai isso subiam!
Pronto, já que insistem, eu desbronco-me um pouco. Mas só um bocadinho.
Não estou a cometer nenhuma inconfidência - os vizinhos do prédio são testemunhas - se vos disser que havia festa todos os dias. E noites.
Ele era caixas de bombons e ramos de flores exóticas, às sextas; técnicas acrobático-sexuais aos sábados; reflexões tântricas aos domingos e ramboiada da grossa, às segundas e quartas. Nas terças e quintas, jantares românticos em trajes sadomaso e desenvolvimento do léxico amoroso do casal: pombinha, fofinha, pote de mel, arrufada, patanisca, aboborinha e meu rabanete.
Mas não se esqueciam de mim. Era tratado imaculadamente. Davam graxa ao amor deles e puxavam-me o brilho com sonasol verde. Estudavam-se um ao outro e limpavam-me o pó com minúcia. Mergulhavam horas em perfumados banhos de espuma e colocavam-me no buraco que tenho na base, um perfumado sabonete de alfazema.
Todo eu rutilava e o meu corpo mais não era, do que um espelho reflector da feliz vida de casados da Mariline e do Ismael: plena de atenções, excitações, miminhos e beijinhos.
Mas não há fome que não dê em fartura. Com o tempo, fartaram-se da marmelada. Foram escasseando os bombons e as flores. Os dias marcados para as suas loucuras, também sumiram do calendário. Eu ali no meio do hall, já numa posição meio enviesada, como a relação dos meus donos. A cabeça virada para a porta da cozinha. O pó acumulara-se no meu corpo, os ácaros faziam pouco de mim, o brilho da minha louça, outrora o centro nevrálgico daquela decoração, esbateu-se-me, ganhando uma película baça, levemente gordurenta.
Depois começaram a gritar um com o outro, a arremessaram objectos: a colecção das caixas de bombons, os ramos de flores secas, os cintos de ligas, o chicote e as algemas. Esgotadas as peças do seu amor, depressa se voltaram para algo mais prosaico: frigideiras, jarras e comandos de televisão.
Fiquei sem uma orelha, ganhei um buraco no lombo, perdi um olho e esfolei o focinho, ficando marcado para o fim dos meus dias.
Hoje em dia, não me fazem caso. Já não me limpam o pó, ignoram-me a perda do viço, não me lavam e esqueceram-se do último sabonete de alfazema dentro de mim, só resta o invólucro vazio. Arrasaram como o meu orgulho de dálmata autóctone, fazendo-me reduzir a um vulgar enfeite. Um bibelô inútil, sem salvação.
Que saudades dos meus colegas da loja de decoração. Onde estarão todos vocês? Que donos lhes coube? Que vidas presenciaram? A fonte de pedra com o menino a jorrar água pelo cântaro; a sevilhana orgulhosa disposta em cima da cama lacada; os pratos de louça azul, com provérbios e ditos populares; os sofás de veludo verde, em capitonê; os centros de mesa com frutas plásticas. O quadro do menino da lágrima.

E a menina, que nos conta você querida almofada?

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

meu o início, vosso o final #1

Congelo sempre mirtilos no inverno. Só assim posso utilizá-los durante todo o ano em marmelada, sumos e bolos. Quando eu era criança, o meu avô contou-me numa das suas muito fantasiosas histórias, que existia um reino de princesas do gelo, exímias amazonas e caçadoras nocturnas, com uma visão apuradíssima, devido aos vinhos tingidos com mirtilo.
Caçavam pirilampos incandescentes, pó incendiado e desperdiçado nas caudas das estrelas cadentes e velas voadoras, para iluminarem o seu reino nos invernos sombrios das montanhas onde vivam.
Um dia, encontraram um mirtilo descolorado. Muito infeliz e sozinho, esmagado numa bola de neve. Olharam para ele com espanto e...

...e agora, caros leitores do meu blogobairro, continuam vocês a história. Aqui ou no vosso blog.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

complicadas, nós? #3


Todos temos códigos corporais, de linguagem, de vestuário. As almas masculinas mais desatentas - quase todas por sinal - evitariam muitos constrangimentos, desarranjos, acaloradas disputas, enguiços, polémicas e quezílias até, se prestassem mais cuidado a algumas das expressões, que nós mulheres emitimos atempadamente.
Assim, muito seria poupado se tomassem em atenção simples frases, proferidas em tom escarninho como: Esquece! Não tenho nada! Deixa que eu faço! Obrigada, eu resolvo!
Queridos homens, desatenções fatais como estas, leva-vos irremediavelmente a escutarem a frase das frases: Precisamos de ter uma conversa!
E neste tipo de conversas, já sabem quem é que ganha sempre...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

exercício #2: suspense?


Precisava de se isolar. Deixou-se ficar para trás, naquela desordenada cozinha cheia de suja louça, encavalitada num exercício de equilíbrio pouco seguro. As luzes já estavam fracas, pastosas e arrastadas, como aqueles sonhos que não terminam, mas conseguiu distinguir num canto escuro, a solidão de uma única laranja ainda por descascar, esquecida à sangria de champanhe.
Retirou do suporte uma faca afiada, daquelas de lâmina luzidia e reflectora, que fazem suster a respiração se empunhadas com destreza. Pôs-se a observá-la com cuidado, subindo-lhe à ponta dos dedos uma tensão nervosa, rogando-lhe que a usasse.
Lapidou a fruta tímida e descolorada, primeiro de forma subtil e delicada, mas à medida que a acústica do silêncio fazia ouvir os silvos do facalhão na bancada de aço inoxidável, fazendo clara concorrência com as estridentes buzinas dos carros, lá fora no vendaval da noite, ele entusiasmou-se e em três golpadas certeiras, desfez carrascamente o aflito fruto em pedaços, provocando-lhe um desmaiar fatal de sumo escorregadio.
A inexperiência fê-lo falhar o último golpe. E no chão de mármore branco impoluto, misturaram-se numa dança lenta, a espessidão encarnada do sangue fresco da sua mão,
com a seiva doce da vítima.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

crónicas de graça # 4


Viajar ou Turistar

O turistar é assim a modos que um exercício de parolos. Uma espécie de obsessão de multidões. Que sobem e descem a torre Eifel num frenesim dos diabos, levam à letra aquela de ir a Roma e não verem o Papa, caem na esparrela da compra de souvenirs nos pontos hiper-turísticos, crêem que encontraram numa loja recôndita, uma das chagas de Cristo, um pedaço do Muro de Berlim, uma página inédita do diário da Anne Frank e prestam um culto mórbido, a canecas com a cara da falecida Diana. Tudo arrumadinho dentro de um saco de lona, com República Dominicana a letras garridas.
São inofensivos. Mas muito felizes, já o testemunhei. Acho-lhes um piadão e por vezes junto-me: também tenho uma t-shirt branca com o I Love NY, caramba!
O verdadeiro turista almoça e janta nos restaurantes de junk food, parece maluquinho na conquista da foto da praxe, com o monumento mastodonte bem ao centro e a sua figurinha de sorriso imbecil lá pespegada,
cheia de malas à tiracolo e ainda o saco plástico do duty free.
A sua maior ambição, é portarem-se como um japonês na Europa: aglomerações de gente pequenininha e morena, sempre a sorrir e de passinhos apressados. Pessoinhas miudinhas, que se nos atravessam na frente da lente, quando finalmente conseguimos focar a imagem ideal. E nem dão conta do estrago, seguem em frente, sôfregos, proferindo um encadeamento
de frases totalmente onomatopaicas, ditas em tom samurai. Sem pausas para respiração.
São os melhores clientes das excursões organizadas; carregam três ou mais gadgets ao pescoço; observam tudo de corrida e de esguelha com o olhar mais vivo que já vi; acenam com a cabeça a cada explicação e clicam dez fotos da mesma imagem.
Ora bem, eu também turisto alguma coisa, principalmente se não conheço o sítio. Não dou é muito nas vistas, apesar de ter tiques parolos, isto é: se eu vou a um local que nunca visitei, cá ou lá fora, eu quero saber de tudo: vejo e revejo blogs de viagens, google maps, sites oficiais, links vários. Vou do consulado à junta de freguesia; já para não dizer que fico íntima de todos onde busco informações. A páginas tantas, já sou eu a dar dicas aos turistas: uma perfeita parola, portanto.
Há um senão, raramente me meto em excursões cheias de gente. Depois
é assim tudo muito à vontade, levamos encontrões, sentam-se quase ao nosso colo, oferecem-nos pastéis de bacalhau, dançam o fandango, beba lá uma pinga oh vizinha... e eu que não gosto nada de vinho de garrafão. Manias.
Outra característica do verdadeiro turista, são as compras. Aí, alto lá: sou imbatível. A rainha das parolas. Não há loja que me escape: da boutique à livraria, do mercado à feira de rua, das lojas de chocolates e compotas, às de chás e cafés, passando pelas lojas de souvenirs dos museus e fundações. E as papelarias e artigos de escrita? Oh senhores, entro em ebulição.
E postais? O que eu trago de postais? Mas Patti, já tiraste duas mil fotografias, para que queres tu tantos postais?
Não percebem nada.
Tem lá algum jeito uma pessoa turistar e não tirar um dia inteirinho para as compras? Um dia e meio, vá. Na pior das hipóteses.
Até ficava maldisposta, poderia dar-me uma apoplexia, uma crise de identidade, uma fraqueza no meu Eu: não saber quem era, perder o rumo, assim, no meio do estrangeiro!
E depois, a segunda mala que levo sempre comigo quase vazia, tornava à pátria cheia de quê? De ar? Que desperdício.
E não preciso de companhia, nem incomodo ninguém. Vou muito bem sozinha.

barcelona, foto minha

Mudando o tom para algo mais repousante e antes que ao meu querido parceiro, lhe dê uma travadinha depois de ler o que escrevi acima, direi que viajar, é outra coisa caros leitores.
Eu viajo por defeito, isto é, passeio-me sem rumo, calcorreando ruas e passeios, praças e jardins. Faço-o por costume. Veio-me no adn.
Gosto de olhar para cima; do meio para cima. Observar os traços dos prédios e das casas, as águas furtadas, ver onde chega e bate a copa das árvores, espreitar as cortinas das janelas mais altas,
ver quem lá mora e que vigia os que passam em baixo, sem saber que também é notado.
Os espelhos da luz. A diferença dos efeitos que ela provoca. As fugas das
gelosias.
Este meu viajar-passear-desfrutar sem norte, é feito de forma mais descontraída, sobretudo nos locais que já conheço. Nos sítios de que mais gosto e onde posso vaguear e me perder, na expectativa semi-secreta de encontrar alguma coisa que ainda desconhecia e que me tenha escapado de outras viagens. E quase sempre encontro. É o usufruir sem compromisso que me atrai, o inusitado da surpresa, o prazer do destapar ainda mais.
Viajar assim, é um estado de zona de conforto, de quase repetição mas com mais bagagem para ir enchendo a memória. Será isso, talvez: um exercício de memória que carrego sempre para onde vou. Sinto muitas vezes que sou o que sou, pela memória que trago.
E depois cair no lugar comum das recordações. Lembrar os locais, os cheiros, as pessoas, a comida, a temperatura, o chão, as vozes. Os pormenores. Falar de como foi a vida, vivida noutro tempo. Noutro lado. Mesmo que esses tempo e lado, tenham sabido e durado pouco.
Mais um pedaço para a memória, registado no meu terceiro braço: a máquina fotográfica.

sagres, foto minha

E o Carlos, o que tem para nos contar?

Crónicas de Graça #1, #2, #3

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

exercício #1: afrodisíaco?


A luz baixa e insinuante e o odor íntimo que vinha do forno escaldante, convidavam à descontracção. Com claros movimentos preliminares e toques profundos, plenos de calma lânguida e dedicada afeição, ia ele desembaraçando-se da pele viva que envolvia aquela apetecível peça de fruta fresca.
Os suspiros silvados que vinham da bancada de inox, despertaram-lhe sensações de entusiasmo e excitação animal. Já ofegante, golpeou três vezes o fruto despido, penetrando o gume afiado da sua lâmina até ao fundo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

capital nacional do cavalo


É só clicarem na foto.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

no confessionário aos 40 #4


Quando escrevo aqui ou noutro lado qualquer, não sei se me repito, se reproduzo memórias, ou se estou a viver duas vezes.
Poderá ser esse um dos mistérios da palavra escrita.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

[17] boa semana


Até daqui a uns dias. Vou ali e já venho.
De capote, samarra, camisa de quadrados, chapéu e botas altas. Castanhas e água-pé.
É a estreia da Beatriz
no Largo do Arneiro, na capital portuguesa do cavalo, numa apresentação de éguas afilhadas da ilha Terceira e num carrossel de quatro elementos. Espécie protegida. Raça Pónei da Terceira.
E a excitação é grande. Ao rubro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

crónicas de graça #3

António Lobo Antunes

Provavelmente este texto, não terá perfil de post, seja lá o que isso for. Deveria ser lido com calma. Contra a correria dos dias que carregamos. Com a disponibilidade de uns bons minutos. Com tempo para se poder voltar atrás, num ponto ou noutro. Com a atenção necessária para se ouvir ALA. Para pensar.
São palavras de admiração que há muito se impunham
. Para mais agora, que ALA comemora os 30 anos da publicação dos seus dois primeiros livros: Memória de Elefante e Os Cus de Judas.
Vendo bem, este será até um post muito curto, pois a sua vida é a sua obra, e a sua obra a sua vida. E milhares de horas, foram aquelas que passou a escrever. E que ainda passa. Não cabe tudo aqui. Seria mesmo impossível.
Este texto não tem qualquer pretensão, a não ser o enorme prazer que me deu fazê-lo, assim tanto, como tenho em estudar, ler e ouvir António Lobo Antunes; mesmo quando ele diz que só fala banalidades: "Tenho a sensação de que só digo banalidades. Eu sou um homem banal. Um amigo meu dizia-me que penso como um génio, escrevo como um bom escritor e falo como um débil mental".
(Uma longa Viagem com ALA, de João Céu e Silva
Setembro de 2009).


feira do livro 09, fotos minhas

Querido António,

Ainda não lhe tinha dito e se calhar nem vai ficar nada satisfeito de saber, pois o António diz sempre que o seu melhor livro é o último que escreveu e já vi, que nem vale a pena tentar falar consigo da sua literatura anterior, pois não faz caso algum de nós. Ainda com a agravante de repetidamente nos dizer, que já nada tem daquele homem dos primeiros livros. Mas mesmo assim, eu gostava tanto, mas tanto de ter lido o livro que o António escrevia durante os anos que esteve em África e que provavelmente deve ter destruído...
O livro a que deu o nome de Voo.
Ontem acabei a primeira parte do Voo, comecei a segunda. Após várias tentativas, julgo ter encontrado o que precisava. (...) escrevo literalmente de manhã à noite, numa febre imensa. Reli e corrigi a primeira parte, que está pronta e embalada. Quando a leio irrita-me. Quando me lembro dela gosto muito. Onde estará a verdade?
(cartas de angola 1971)
...
Havia um livro muito comprido que praticamente era o embrião de todos os que foram publicados. Escrevi-o enquanto estive na guerra, e muito antes disso, para aí durante sete ou oito anos.
(entrevista a mário ventura, 1981)
...
Depois passei dez anos com um romance - antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra - e fazia romances que não publicava.
Acho que as miúdas têm um. Esse romance era enorme - três vezes o Fado Alexandrino -, porque na guerra eu escrevia todos os dias para mim e isso ajudou-me muito. (...) Eu lembro-me que mandava bocados - era tudo uma merda - e a Zé achava aquilo uma maravilha, para altos voos. Às vezes, eu acreditava, mas na maior parte das vezes não. Estava consciente de que não prestava e que não era o que eu queria fazer.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Mais aquele outro, a que o António pensava chamar Depois de Júlia. Que foi feito dele? Chegou a começá-lo?
Meu querido amor
DEPOIS DE JÚLIA: título do calhamaço que se seguirá ao Voo, que eu acho porreiríssimo. Diz o que pensas. Entretanto a carroça pôs-se a andar outra vez. (...) E logo a seguir, depois de um intervalo para respirar, começo esse tal Depois de Júlia (que queres, adoro este título) de que tenho a ideia. Gostas do nome? (...) Gostas de Depois de Júlia, não gostas?
(cartas de angola 1971)

E tantos outros livros - mesmo muitos - que o António deitou para o lixo, antes de o terem publicado pela primeira vez.
As coisas que escrevi antes foram para o lixo. Sempre fiz autos de fé periódicos das coisas que escrevi. Até os rascunhos do novo livro que estou a escrever rasgo com frequência.
(entrevista a josé jorge letria, 1980)
...
Livros, houve uma série deles antes do primeiro ser publicado, e nem chegaram a ser vistos por ninguém. Escrevia-o e deitava-o fora.
(entrevista a mário ventura, 1981)
...
Acabava os livros e deitava-os fora ... Não eram bons ... Tenho pena de um - não sei o que lhe aconteceu - que foi escrito antes do Memória de Elefante, mas não sei o que aconteceu a esse livro.
(um
a longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
E outros também foram para o lixo. Acabava e deitava-o fora, porque a publicação nunca me interessou muito. Eu queria era escrever, porque enquanto escrevia estava mais equilibrado, estava melhor comigo.
A partir da altura em que o Daniel Sampaio leu o manuscrito (Memória de Elefante), deixei de deitá-los fora.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Lendo as suas cartas de guerra, sente-se de imediato, já nesta altura com vinte e alguns anos, a presença constante do cruzamento da angústia-prazer, assomando-lhe à mão que desenha as letras, e à cabeça que vela por essa mão.

O pior para mim é que escrever não me dá prazer nenhum! Mas não posso passar sem isto. Os tormentos do parto tiram-me a sensação de estar a fruir o que quer que seja. Mas é horroroso estar sem escrever. Falta-me o ar. É difícil explicar, mas a sensação de frustração é imensa. E quando dou por mim estou a deitar palavras no papel com a ternura de quem deita um filho.
(cartas de angola 1971)
...
É tão misturado com angústia e aflição, durante um livro passa-se por uma gama de emoções muito dispersas.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Faz trinta anos que o António foi publicado pela primeira vez. É impressionante que o Memória de Elefante e Os Cus de Judas, continuem a vender-se tão bem como em 1979. São best-sellers, os leitores gostam muito destes dois livros. São uma referência na sua obra.
Eu hesitei muito antes de publicar o livro (...).
Por outro lado, há todo o problema da escrita, que são muitos anos de escrita, hesitações, de dúvidas, de reescrever, muitos anos à procura de uma forma. Acontece que, pela primeira vez com este livro, eu senti que tinha encontrado uma maneira pessoal de dizer as coisas.
(entrevista a rodrigues da silva, 1979)
...
Escrevia há muitos anos, mas nunca tinha pensado em termos de publicação. Os meus amigos nem sequer sabiam que eu escrevia, nunca pensei em fazer uma carreira literária. Por razões várias mostrei Os Cus de Judas a um amigo, um médico, o Daniel Sampaio, que não tinha nada a ver com o meio das letras. Só que ele impressionou-se e tratou de tudo, levou o original ao editor, etc. (...) Memória de Elefante foi o primeiro a sair. Era, no entanto, um livro em que ninguém acreditava, saiu nas férias, em Julho. Quando vim, em finais de Setembro, a primeira edição estava a esgotar-se. Achei estranho, o livro fora lançado por uma pequena editora (...). Foi tudo de facto muito surpreendente pela forma como aconteceu. Depois as edições começaram a sair umas atrás das outras.

Os Cus de Judas, apareceram depois. Se não fosse o Daniel nunca teria publicado nada, teria continuado a escrever como até então, nem sequer para as gavetas, porque não tenho gavetas a não ser as da roupa. Rasgava o que ia fazendo, nem sei, afinal porquê.
(entrevista a fernando dacosta, 1982)
...
Sim, ninguém me queria, mas eu não estava preocupado porque escrevia sem ter pensado em publicar. E achavam que aquilo não era um livro, que era uma coisa muito estranha!
...
Se eu fosse reescrever o Memória de Elefante! Não o posso fazer porque é um livro de um outro, eu já não sou aquele homem, aquele rapaz.
...
Levei anos a levar pancada das pessoas que escreviam nos jornais, dos críticos, disso tudo, e nunca percebi porquê. Mas era pancada, pancada mesmo, porque não me aceitavam. Agora compreendo, pois vendo as coisas no contexto da época, o Memória de Elefante era algo completamente novo numa altura (pós-25 de Abril) em que toda a gente esperava obras-primas que estavam nas gavetas e nada foi publicado.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
(...) E agora olhando para aquilo, porra, eu escrevia aquilo tudo outra vez ou deitava fora, nem publicava. E espanta-me, pois o livro fez agora nova edição de bolso, e continua a vender. É estranho... O que eu vou deixar é isto. Palavras ...
Um autor que ninguém sabia quem era! Lembro-me de ele (o editor) dizer: É melhor tirarmos o Antunes, Antunes é muito feio. Fica só António Lobo.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)


Esse ser-escritor que traz consigo desde sempre, tem vezes que dá mostras que lhe dói, outras que lhe causa uma alegria desmesurável. Um não sei quê que parece só querer minorar, quando o António é o António Lobo Antunes, aquele que assina os livros.
(...) há horas mágicas, há momentos em que se está a escrever e a chorar e não é por ser triste ou alegre, é porque era mesmo aquela palavra que nos visitou e fomos habitados por outra coisa. esses são os momentos mágicos que acontecem nas primeiras versões (...). Nas primeiras versões, sim, há momentos em que, como dizia o García Marquez, parece que temos o berlinde na mão.
(...) O sofrimento não sei de onde ele vem. Lembro-me sempre da minha mãe dizer: "Não percebo porque é que estás sempre triste. Nasceste com tudo". A relação comigo próprio é muito conflituosa, é mesmo conflituosa!
(...) E é tudo tão breve que não temos o direito de ser tristes, porque é uma honra estar vivo. Senti isso depois da operação, quando pensava "afinal respiro" e comecei a tirar prazer das coisas: de estar sentado, de andar e inclusive de respirar, porque antes custava-me cada vez que tossia. (...) É tão bom respirar, e estar vivo é um privilégio.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
Prazer dá-me sempre, mas foi tão difícil. É tão misturado com angústia e aflição, porque durante um livro passa-se por uma gama de emoções muito dispersas.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)
...
Escrever é a minha razão de viver, a minha alegria e também sofrimento, mas é a minha sina.
(entrevista a carlos vaz marques, 2008)

Mas tanto a alegria como a dor da escrita, me parecem deixá-lo só.
Dou-me com muito poucas pessoas. Até porque este tipo de vida é um bocado incompatível com uma vida social. preciso de dez, doze horas para escrever. Não vou ao cinema, a não ser com as minhas filhas, não vou a cocktails, não faço vida social.
(entrevista a ana sousa dias, 1992)
...

(...) Estou todo o tempo com o livro.
Sou uma pessoa muito fechada, tímida, com poucos amigos, não sou muito sociável, não vou a bares, nem a lançamentos. Nunca tive grandes relações com pessoas do meio literário e, normalmente, não vou nessas excursões.
(entrevista a sara bello luís, 2001)
...
Eu sempre fui assim, a minha mãe diz que eu sempre brinquei sozinho e , no entanto, tenho a felicidade de ter bons amigos. Eu gosto de estar sozinho.

O sol dá-me uma alegria muito grande, mas depois vou acumulando culpabilidade, a sensação de que ... sei lá, de que fui acumulando erros ao longo da vida. (...) E isso é complicado para mim. É a primeira vez que estou a falar nisto, nestes períodos entre os livros... Quando estou com um livro, estou tão ocupado com o livro, mas quando fico sozinho comigo mesmo, às vezes é complicado.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

A sua obra estabeleceu rupturas com o romanesco do século XIX, renovando-o, impondo-lhe um novo género; a sua técnica narrativa, é um dos seus maiores encantos e consiste num desafio constante às nossas expectativas e à literatura actual: as micro-narrativas, as vozes, o exercício constante da memória. O kitsch; o seu apurado kitsch. Esse silêncio que tenta trazer para a escrita, a sua obsessão na procura de uma obra perfeita...
E ainda assim insatisfeito, António?

Porque quero sempre um bocadinho mais. Ir mais longe. Perceber como é que se pode fazer melhor. Eu não quero fazer pior.
(entrevista a luísa jeremias, 2001)
...
(...) mas o problema já não é escrever melhor do que os outros, é escrever melhor do que nós, ir mais fundo, tentar aproximar-me do livro ideal - o que trazemos cá dentro - e isso é difícil.
Já justifiquei a minha vida por ter escrito meia dúzia de livros assim e devia sentir-me satisfeito com isso, mas penso que poderia ter feito mais...
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
Vamos lá a ver se ainda sou capaz de fazer alguma coisa de jeito.
É um medo. É um medo, João.
...
Mas queria ir mais fundo neste livro (Arquipélago da Insónia). Isso quero sempre, aproximar-me, sabendo que nunca vou chegar.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Sabe António, vejo a sua obra como um tratado de Portugal, dos portugueses, da nossa forma de ser, viver e sentir. Penso sempre que se um estrangeiro quiser entender esta gente lusa, deveria pegar nos seus livros. Como outros pegaram em Camões, Eça e Pessoa.
Escreve-nos por dentro, sabe-nos da alma. Conhece-nos os silêncios.
Na última vez que estive fora, na Finlândia, dei por mim a ter enormes saudades de Portugal. (...) Para um homem como eu, meio-brasileiro, meio-alemão, é o país onde quase não venho e onde sempre estou.
(entrevista a baptista-bastos, 1985)
...
(...) penso que não seria capaz de viver sem a língua portuguesa, sem ouvir falar português. A minha escrita está muito enraizada aqui, nestas gentes, neste país.
Percebo muito bem que os emigrantes só pensem em regressar, mesmo que seja para fazer casas de azulejo: há um charme lento neste país que é irresistível.
(entrevista a miguel sousa tavares, 1988)
...
Das pessoas, da língua, da cor do ar. A gente só se lembra disto quando está no estrangeiro. Pensamos que não temos sentimentos patrióticos, mas temos. E são muitos claros no estrangeiro.
(entrevista a luísa jeremias, 2001)
...
Eu tenho muito orgulho do meu país, muito, e cada vez gosto mais do meu país, cada vez gosto mais dos portugueses e cada vez mais sinto que é para os portugueses que eu escrevo. Gosto de Portugal, gosto dos seres da minha terra, gosto do clima, gosto da luz da nossa terra e cada vez mais sinto que é aqui que eu pertenço. Tenho este orgulho! E quando dizem que Portugal é um país pequeno e periférico, fico furioso, porque para mim é grande e chega-me perfeitamente, não preciso de mais terra.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
(...), isto é a minha terra e cada vez estou mais preso a ela.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2009)


São 21 livros publicados. Três livros de crónicas e centenas de crónicas (já sei que não gosta muito delas). É o autor português mais traduzido. O mais premiado. Letras de músicas.
Desde criança que são horas infinitas de escrita e contudo, receia perder a mão.
Mas entre dois livros sinto-me sempre mal: receio não ter ideias ou não conseguir concretizá-los...
(entrevista a luís almeida martins, 1988)
...

(...) medo que tenho de não ser capaz de escrever de novo, um problema que aparece a cada livro que acabo. Será que eu serei capaz de fazer um próximo livro? Ninguém que escreva a sério vai ser capaz de o dizer. Também é uma espécie de negociação com a morte, deixa-me escrever mais um, mais dois, mais três...
( uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...

(...) porque cada vez mais penso que - às vezes passa-me isto pela cabeça - uma pessoa nasceu com um determinado número de livros e, acabando isso, a sensação é de medo de estar a rapar o fundo do tacho. De não ter mais nada, ou de começar a imitar-me. A fazer uma espécie de paródia de mim mesmo.
( uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)



Somos homens simples que lidam com uma criação superior a nós.
(antónio lobo antunes - Boston, 2008)
Obrigada António, tem sido um enorme prazer.


E o que tem o meu querido parceiro, para me dizer do Saramago?

Crónicas de Graça #1, #2.