quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

sopas de letras portuguesas # 2


Texto inspirado em: "Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas"
Título do livro de Ricardo Adolfo

O assunto da morte sempre me foi odioso. Evitei-o de todas as vezes, fiz de conta que era um não-tema, neguei-me a pensar nele, fingi não saber do que se tratava - e na verdade não sabia.
Mas sei agora. Que morri. Morto e matado de todo.
O tema é mórbido, bem sei, mas é que se passam tantas, mas tantas cenas depois de um homem estar morto, que nem sei por onde começar. O positivo da questão, é que agora tenho a morte toda pela frente.
Primeiro, quero já aqui esclarecer e acabar com boatos e injúrias, sobre as larvas serem nojentas. Nada mais falso, caros vivos da silva. São os bicharocos mais simpáticos que existem à face da terra, ou melhor nas suas profundezas. Vermes companheiros e sempre muito presentes, quer na limpeza das minhas unhas dos pés, no vazamento do pó dos meus ouvidos, enroscadas em sonecas profundas na dobra dos meus joelhos, ou a petiscarem os restos gástricos do meu estômago.
Portanto, temos criaturinhas que comparecem com frequência, na solidão desta minha vida, perdão, morte.
Aqui nas catacumbas deste cemitério de província, onde agora habito, a animação é grande. Não fora alguns ossos já se terem desfeito e posteriormente levados pelas larvas, impedindo-me grandes movimentos ao esqueleto, diria mesmo que por aqui, no reino dos mortos, abunda o reboliço, a agitação e o alvoroço.
Forneço-vos para vos elucidar, uma breve listagem dos nossos afazeres diários:
- Observação e contagem das noites estreladas. Vocês sabem lá os milhares de estrelas que existem no firmamento. Eu estou em quarto lugar nesta prova. É o concurso mais popular do cemitério. É claro, que posição de barriga para cima como nos colocam, também ajuda muito.
- Semanas temáticas: a escassez de visitas ao cemitério; as doenças mortais; a morte-santa; o halloween; a fauna necrófoba; como evitar a pá dos coveiros; os benefícios de uma saudável putrefacção; as vantagens e desvantagens da iluminação das morgues; o peso e o cheiro das coroas de flores; a qualidade duvidosa da madeira utilizada nos esquifes; o péssimo aquecimento na ala das autópsias; cinema de terror.
Mas gostar mesmo, mesmo, é da semana de beleza e dos cuidados com o envelhecimento da imagem: como manter esbelto o seu cadáver.
Aprendi conselhos utilíssimos e cá vão eles: esfoliação das peles mortas, com o ancinho do jardineiro, dez vezes ao dia; evitar a absorvência das flores apodrecidas do funeral, combatendo assim um crónico e fedorento perfume em todo o corpo, ou melhor, do que resta dele; reciclar a argila contida na terra que nos sobrecarga, para a tonificação da ossatura existente; aproveitar e extrair das longas raízes das hortas vizinhas, que por nós se emaranham, as suas propriedades anti-oxidantes, tão benéficas ao combate dos danos provocados pelos radicais livres.

E agora, aproveitando a oportunidade desta minha crónica no mundo dos vivos, pedia-vos encarecidamente que se nesta moda dos referendos, não podiam fazer mais um sobre a prática recorrente das etiquetas no dedo gordo do pé, tão em voga nas morgues dos hospitais.

Eu e a minha letal vizinhança, votamos contra! Aquilo dá um raio de uma comichão.

E tu minha Gi, como te safaste com mais estas letras portuguesas?

18 comentários:

Si disse...

Ó meu Deus...
Eu não posso comentar este texto...
Não depois de ter ouvido as histórias que ouvi contar nas ultimas férias....
Sei lá se este não terá sido protagonista!!!!!!!! ;D

salvoconduto disse...

Ooh! Vai-te lixar! E eu que vinha por causa da sobremesa...

Quanto à etiqueta, morto que é morto devia ter o dedo gordo do pé cortado. Até na morte os gordos têm a mania das grandezas!

maria teresa disse...

O texto está muito bem escrito, muito criativo, muito bem encadeado nas ideias expressas e só o lê e comenta quem quer. Eu li-o e hesitei em comentar por um simples motivo, não gostei do conteúdo. O nascer e o morrer são actos, para mim tão sérios, que não gosto de os ver glosados (não sei se apliquei bem o termo).
Peço-lhe desculpa, mas ao escrevê-lo ...
Abracinho

Patti disse...

Maria Teresa:
É como diz: o assunto é sério e nem sequer gosto de falar sobre ele, quanto mais trabalhá-lo para ser escrito.
Mas no desafio desta parceria com a Gi, foi o que "calhou" desta vez e assim, abordei a questão da maneira que a mim me pareceu menos desagradável. E aqui, pensei só em mim, porque fui eu que o tive de pensar e passar a limpo. E acho que a abordagem escolhida até resultou melhor do que eu esperava, para um tema que à priori é difícil a todos nós, falar.
Este ou qualquer outro texto, primeiro que o próprio tema, é um exercício de escrita, de imaginação, de criatividade, de ultrapassar obstáculos.
E como refere também, só comenta e lê quem quiser.
Obrigada mais uma vez pela visita.

Rita disse...

Então mas os mortos não vão para o céu saltar de nuvem em nuvem e tocar harpa?
Jokas

Anónimo disse...

Tenho muita dificuldade em comentar este tema, talvez porque não o consiga ver com o distanciamento necessário, mas confirmei a minha opção de querer ser cremado e que as minhas cinzas sejam lançadas no rio La Plata.

BlueVelvet disse...

Patti,
"O assunto da morte sempre me foi odioso. Evitei-o de todas as vezes, fiz de conta que era um não-tema, neguei-me a pensar nele, fingi não saber do que se tratava"
Faço minhas as tuas palavras e mesmo que esteja muito bem escrito, e deve estar, não o vou ler.
Nem comentar.
Desculpa mas não estou na melhor altura para estes temas.

Rosa dos Ventos disse...

Não é fácil abordar este tema mas obrigações são obrigações e um dia todos teremos a obrigação de estar mortos.
Embora já ande por aí gente mais morta que viva...

Abraço bem vivo, malgré tout

Gi disse...

Ai melheri tu não vás para realizadora de cinema, leste? Ainda te arriscas a ganhar um óscar.
Talvez devido à minha costela indiana, encaro a morte como fazendo parte da vida. Desde pequena que vi pessoas a serem cremadas e a alegria dos hindus que cantam e se vestem de branco.
Quando o meu pai morreu (e morreu de repente, sem estar doente) toda a família encarou da melhor maneira. No velório e no funeral evocámos coisas que o fizeram rir e gargalhar, coisas qu ele fez e que fez rir outros.
Tenho a certeza que ele (onde estiver) se riu ao ler o meu texto.
Foi cremado e eu também serei.
A morte não é uma coisa mórbida, uma coisa que me perturba é o que se pena em vida para se morrer. Isso sim faz-me mal.
Saudades? É claro que tenho, tanto dos que morreram como de pessoas que nunca mais vejo e estão vivas.

Patti: G-O-S-T-E-I.

paulofski disse...

Primeiro um comentário a alguns comentários. Todos sabemos que mais tarde ou mais cedo teremos um fim, não somos imortais, e até lá porque não brincar um pouco com a morte de uma forma criativa, bem escrita e criativa, porque não!

Depois a minha admiração à Patti e à Gi por terem abordado um tema tão delicado e ao mesmo tempo evitado porque interfere com a sensibilidade das pessoas. Tabus de medo, a morte, a vida se existe para além da morte, o pavor, fantasmas e seres sobrenaturais. Sei lá eu o que se sente ao morrer, se a morte é boa ou má, recomendável ou não. Cá por mim espero bem continuar terreno e vivinho da silva e por muito tempo de preferência. Depois se verá, ou não, sei lá!

Luísa A. disse...

O tema é arrepiante, Patti. Mas a brincar, a brincar, aflora a verdade consoladora de que, no mundo, nada se perde e tudo se transforma. E que há outras formas de vida que se desenvolvem sobre a nossa morte. Ao contrário do Carlos, gostaria de ser enterrada num campo de girassóis. :-)

Si disse...

(Lembrei-me agora: Mas que negócios fantásticos se podem realizar com este público alvo....!)
Ó rapaz, é que tu nem sabes da missa a metade, das coisas que te podem acontecer ainda e aposto que estás morto por saber!
Então, vá, aponta aí, pode ser que te interesse:
Actividades Vip: Ser espiolhado até ao tutano pela Temperance Brennan; Actividades Ecológicas: Ser levado para uma vala comum, para reciclagem de esquifes.(nota: esta actividade, tem bastante saída em tempos de crise e pela sã convivência com outros espécimes, combatendo o isolamento)
Actividades Pedagógicas: Ser levado para um teatro anatómico e servir de copianço a estudantes.
Actividades Nocturnas: Abanar o esqueleto em qualquer discoteca in (Nota: Outra actividade de grande saída, pelo intercâmbio com múmias do jet-set)
e finalmente
Actividades radicais: wind surf (só para clavículas), surf de prancha (só para tíbias), body board (esqueleto inteiro), slide (só para rótulas) e rappel (só para grandes crânios)
Topas??

Pitanga Doce disse...

Oóóóóóóóóó meninas! Acho que as chuvas torrenciais estão a fazer mal a todas vocês. Que raio de história é esta? Que dedão mais feio, ó cum carago!
Eu preferia o bife a cavalo daqui debaixo.

Venho aqui toda romântica porque deixei o meu Ivan lá em casa a cantar Lembra de Mim? e ele já me disse até que sim e encontro isto?
Ó por amordedeus! Até tu SI?

Patti disse...

PauloFski:
Obrigada amigo, por esse espírito especial que tens. Fiquei sensibilizada (e quase que posso falar pela Gi)com o teu comentário.

Laura Ferreira disse...

Pois eu gostei muito da abordagem e da parafernália de informação que me fizeram vibrar os sentidos!

pedro oliveira disse...

estou como o CBO, ainda não foi desta que mudei de opinião sobre a cremação...

Paula disse...

Priga,
Quase que me apetece plagiar o comentário da Gi! O tema é, obviamente díficil, dada um tem os seus contactos mais ou menos imediatos com a dita, cada um a encara e recorda da sua maneira... e blá, blá, blá!
para mim o texto está genial, num fantástico exercício de criatividade. Se a morte pesa? Claro que pesa! Se as saudades dos nossos mortes nos pesam? Ainda mais! Agora, significa isso que não se pode criar/brincar/criativar à volta desse tema? É óbvio que não! Excelente, e MAI NADA!
Bjs

Maria Letr@ disse...

Este texto, soberbamente encadeado, magnificamente escrito, não é recomendado a piegas como eu, que excluem do seu vocabulário, tanto quanto possível, a palavra morte. Deus meu! A descrição, chegar mesmo ao detalhe da etiqueta, faz tremer de pavor as minhas entranhas. Fico reflectindo em todo aquele cenário escabroso, e gela-se-me a coluna vertebral. Fico encolhidinha de medo. Livra! Mas tenho de manter-me bem na vertical e dar os parabéns à autora do texto.