terça-feira, 22 de novembro de 2011

so sorry

(foto minha: camden town-regente canal)

Ontem ouvi na rádio que Londres tinha sido coberta por fortes nevões. Mais de 200 voos cancelados. O caos nos aeroportos. Mais um ano passou - tão rápido - e tudo se repete.
Sorri. Discretamente. Não fosse algum passageiro, sem humor britânico, fulminar-me.
Mais uma vez e sempre, foi Londres no ano passado o meu destino. Mas pela primeira vez em muitas, no Natal. Sonho antigo. Coisas minhas.
Também eu fui vítima dos nevões, dos voos cancelados, dos nervos do check in, das filas no exterior do aeroporto.
Queria lá saber. Que nevasse! Que descesse a temperatura a negativos. Que o Holland Park já não fosse verde. Que acordasse às sete e flocos de espuma me batessem nas portadas. Que os ponteiros do Big Ben escorressem branco. Que desfilassem pelas ruas apinhadas, cachecóis gigantescos, gorros carnudos e botifarras de pêlo com gente lá dentro. Que o chocolate quente me aquecesse as luvas. Que enregelasse a ouvir os coros de Natal. Que houvesse sempre Chelsea e Kings Road. E Camden Town. Que almoçasse às quatro da tarde e já fosse noite. Que calcasse 4 pares de meias. Que fosse Inverno.
Que fosse eu.
Que fosse Londres.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

ele há coisas piores


Uma amiga morreu na praia, disse-me ela noutro dia. Fiquei com pena.
Depois pensei. E tenho andado a pensar. A moer a cabeça com isto da morte dos outros. Que com a minha não quero intimidades. E na praia. Que até nem gosto por aí além.
Ao contrário de outras expressões, inteiras de sensatez, não penso que esta tenha muita virtude.
O que terá assim de tão mau, morrer-se na praia? Não houve tempo para engelhar os pés na areia descalça? A água salgada não chegou a ferrar a pele? Faltou alcançar o barco?
Mas então e a praia?
Afinal ganhou-se a praia.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

folders


Penso que já se nasce assim. Com a cabeça dividida por sectores. Digo eu. Não sei.
A minha é. Ordenada. Com cores, etiquetas, formatos e texturas. Alguns com post-it para não esquecer. Clips presos, notas de rodapé, sublinhados a encarnado, rasuras violentas, papelinhos agrafados no canto.
Parece um arquivo com muitos ficheiros, daqueles metálicos que tinham umas pastinhas penduradas, que rangiam a cada safanão.
Agora preciso de arranjar um sector "miscelânea".
Atirar lá para dentro, à laia de não te rales, tudo o que já não me apetece, o que não vale a pena, aquilo que não penso perder sequer tempo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

segunda pessoa do singular


A minha avó passajava.
Da capoeira - pensava eu - trazia o maior e mais claro ovo, o mais liso e bonito das galinhas ruivas e esquecia-se dos dias, em tardes de chuva envidraçada ou de sol severo, na salinha da costura, a dispor como novas as meias do avô.
- Oh 'vó, como é que tu nunca partes o ovo?
- As avós não se tratam por tu - e sorria.
A minha avó pregava.
Fixava o botão no tecido e deslizava a linha na ponta da língua, enfiando-a na agulha com jeito e à primeira. O nó firme era dado numa única extremidade, e a outra ficava mais curta e solta. Não se pregavam botões à preguiçosa; com duas linhas unidas!
- Oh 'vó como é que fazes para a linha não fugir?
- As avós não se tratam por tu - e sorria.
A minha avó crocheava.
Pegas de caleidoscópio com cores das romaria de verão, que ela fazia nascer naquele instante. Magistrais pedaços de croché em formas perfeitas de losangos, hexágonos e circunferências, de fazer inveja a qualquer catedrático da disciplina.
Pegas perfeitas e rígidas, que não me deixam queimar nunca e que guardo, ali no canto secreto da cómoda que tem bicho.
- Oh 'vó, que nome dás a essas cores todas?
- As avós não se tratam por tu - e sorria.
Na salinha da costura, onde a chuva estalava nas portadas e o sol, invejoso das cores e do brilho daquelas linhas, a agredia queimando-lhe as costas já curvadas, a minha avó passajava, pregava e crocheava ... e sorria.
E eu tratava-a por tu.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

e depois eu


Há uns séculos, quando este blog fez um ano, escrevi ali do lado direito, que "às vezes só me faltava eu".
Das muitas vezes que deparei comigo, assim frente a frente, do outro lado do passeio, num cara com espelho, foi quando me iniciei, aqui, sem querer, a escrever.
Aquilo, de que nós somos muitos ao mesmo tempo, e que vamos renovando, alterando e mudando estes eus todos, sabendo de outros, descartando tantos mais; é tudo verdade.
Mas acontecem-nos no caminho, eus mais atinados do que outros. Os eus em que estamos só nós...e eles.
Já alcancei, entretanto, mais um ou outro.
Mas um dos meus eus mais acertados, é este.
Tentar escrever. Só eu.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

em estado de...


...regresso.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

trivialidades


Chegou arrastando a cauda do vestido novo, que ficou entalado na porta de ferro. Não se incomodou, pelo contrário, agradava-lhe fazer-se notar.
O excesso do rico brocado, também não lhe deu muito jeito ao sentar-se na minúscula cadeira da esplanada, mas Anne Mathilde não era jovem de chiliques e lá se acomodou entre sedas, rendas, laçadas e leques de pluma de avestruz.
Enquanto bebericava um chá gelado, esticava o pescoço para alongar a postura. Cruzava uma perna, abanando a ponta do sapato para exibir a fivela larga e observava com elevado prazer, o efeito provocado nas demais à sua volta.
Criticava para dentro do seu ar inofensivo e angelical, as cores que as outras não sabiam combinar, o enxovalhado dos seus algodões, o despropósito na junção que faziam entre organzas e rendas, e a tentativa frustrada de imitação da moda na corte.
Elas faziam-lhe o mesmo. Invejavam a elegância do porte de Anne Mathilde, gabavam-lhe o bom gosto no vestir, admiravam a forma segura com que agarrava o copo do refresco de chá e algumas até se atreviam a mordiscar as bolachinhas de sésamo,  do mesmo jeito bico-de-passarinho com que ela o fazia.
Anne Mathilde, a bastarda de Napoleão, era um modelo a seguir naqueles dias.

quinta-feira, 31 de março de 2011

em delito


Hoje, a convite da Ana Vidal, estou aqui.

domingo, 27 de março de 2011

encerramos todos os dias no domicílio


Sentia-se já saturada das caixas e da profissão. Anos de aperto, de cheiro a cartão, de açúcar e bolos, da espera, da posição contorcida.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Aquelas caixas-presente eram cada vez mais fedorentas. E acanhadas. Muito permeáveis. Absorviam o ar saturado, que de fora lhe chegava espesso da cerveja, emborcada em goles desmedidos.
O cartão deixava passar o cheiro dos charutos beras, mais as viris prosas gargalhantes, que se viviam do lado de lá daquela caixa.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Depois dos 30, trazia a respiração mais difícil, transpirava como um rio, nasciam-lhe bigodes de suor, o biquíni agregava-se ao seu pregueado corpo ensopado, desatinado por se desapertar. As lantejolas, baças e velhas, soltavam-se, indo-se confundir na repugnante cobertura do bolo que a encobria.
Finalmente o alívio da música. As primeiras notas de uma rapsódia antiga, avisavam-na que iria rebentar pela caixa afora.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.
Com um sorriso sedutor imposto pela profissão, deveria procurar um rosto de solteiro atemorizado e dançar para ele. Vagarosamente. Aliciá-lo, provocá-lo, fazê-lo soltar o dinheiro e prendê-lo nas tiras do biquíni.
Não sentia os músculos, não sentia o creme do bolo a desmoronar-se debaixo de si, não se sentia resvalar.
Não se sentiu capitular.
Esqueci-me de ir ao supermercado. De pagar a água. Da última prestação da máquina da roupa. E do leite em pó do bebé.

quarta-feira, 23 de março de 2011

outras vezes não


Às vezes utilizo um sistema de desocupar as palavras. É físico. Entro nelas.
Interiorizo-lhes o sentido, retiro-lhes o recheio e depois escrevo-as como eram antes de serem escritas. Só emoções. E som.
Às vezes utilizo um sistema de desocupar as palavras. Pego em água e sujo-a, dando-lhe opacidade, ou junto-lhe sal para a pôr no mar, ou ainda lhe ofereço uma gota de cheiro e chamo-lhe perfume.
Ou a esvazio de vez, e torna-se seca.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

pena


Era uma vez um cão lindo, como lindos são todos os cães, que foi Amarrado ao nosso portão.
Doente, fraco, muito magro e triste.
Maltratado. 
Abandonado.
Cuidou-se dele, tratou-se, curou-se e amou-se.
Até que um dia, alguém de fora, reparou nele e não mais largou os seus olhos dos dele.
E visitou-se diariamente durante meses.
E levou-o.
O nosso querido Pena, o cão lindo, foi adoptado.
Foi viver para uma casa grande ao pé do mar, com uma praia só para ele, no meio de uma família só sua.
Sê muito feliz querido Pena, tanto como nos fizeste a nós felizes, por te termos conhecido.
E assim, era uma vez um cão lindo, como lindos são todos os cães, que foi Desamarrado do nosso portão.
Para sempre.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

ponto de saturação


Surgi da cultura intensiva do pântano, onde me alagaram, inteiro, a existência. Ensoparam-me a vida, a alma e o corpo, com prantos de água que em constantes movimentos circula em mim.
Não quero mais ser grão que alimenta o  mundo. Esgotei a minha antiguidade em sucessivas inundações, transplantes, colheitas, ceifas, medas e debulhas.
Fujo agora dos braços do homem, que me labora o corpo frágil sem descanso. Me colhe, trata e coloca na boca. Arroz-branco, arroz-doce, arroz-salteado, arroz-inchado.
Corro pelos campos amadurecidos, numa inquietação de me ausentar. Salvar a vida, salvar a crosta, salvar a pele.
Cansa-me a água.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

2011


Não é muito meu costume, falar aqui de aspectos pessoais. Mas as minhas ausências têm sido frequentes e o motivo é dos melhores.
A vontade é antiga: o voluntariado. E a disponibilidade só surgiu há uns tempos.
Estou de pedra e cal em dois projectos que me preenchem: os cuidados paliativos e os animais abandonados e maltratados.
Difícil? Será com certeza. Mas a vida nunca me fez sentido vivida como indivíduo isolado, mas sim na direcção dos outros e com os outros.
Os ganhos são imensos; não se conseguem contabilizar, e as perdas ... essas compensamos com olhares de gratidão. Porque os olhos são todos iguais. Os do homem e do cão. 
E no fim, quem agradece somos nós.