Quando vou para a escolinha, a pé, sempre de mão dada com o meu paizinho, como ele diz, passamos por mil aventuras.
De pastinha às costas e cesto de verga nas mãos, com o almoço, ainda quente, lá vamos nós, bem cedo, pela Luciano Cordeiro, até ao Paço da Rainha, a cantar “o Chico larico da perna assada, comeu um burrico na semana passada”, “o meu chapéu tem três bicos” ou a Portuguesa. Temos de cantá-la todas as manhãs antes de começar a aula.
No cimo da rua, encontramos o Zég Lareg, um menino que se cruza todos os dias no nosso caminho e que deve andar numa escola perto da minha. Zég Lareg? Onde foi ele inventar este nome?
“Olha, lá vem o Zég Lareg, vamos dizer bom dia” – diz o meu pai e cumprimenta-o muito baixinho.
Aperto-lhe a mão com força, “Oh pai, não, que vergonha, eu não conheço o miúdo e ele não se chama assim, de certeza!” – e ele farta-se de rir, com o meu acanhamento.
“Bom dia, Zég Lareg, então já vais atrasado!” O miúdo nem ouve e nem se apercebe de nada, mas eu acho sempre que ele repara e coro no meio de gargalhadas nervosas.
Mais à frente, damos de caras com um colega de escola, de quem nem conheço os pais e nem sei sequer o nome dele, porque anda na 4ª classe; é dos “crescidos”.
“Olá D. Amélia, Sr. Américo! Como vão os senhores? E o Chiquinho, tem boas notas?”
“Pai, que horror, não, não! Olha que eles percebem! Esses nem devem ser os nomes deles!” - digo eu sempre assustada e ao mesmo tempo excitada com as nossas brincadeiras secretas, que afinal, ninguém se apercebe. Só nós.
Eu desconfio mesmo que o maior gozo do meu pai é ver-me aflita por um lado e a rir-me por outro, cheia de receio que as pessoas, com quem ele se “mete”, o ouçam!
Quando às vezes, nos atrasamos, apanhamos o autocarro. Aquele, verde de dois andares, que tem o revisor com uma mala de cabedal à tiracolo com um fecho que faz click e bilhetes coloridos entrelaçados nos dedos, mais o aparelhinho de metal, donde vem um tic-tic, sempre que os fura.
O que eu gosto de ver o chão do autocarro, cheio de bolinhas de papel de todas a cores!
E, lá vem a história, do menino Luízinho, que era pequenino, pequenino como um relógio e . . . “entrou uma senhora muito gorda, que não vê o Luízinho e senta-se em cima dele. Coitadinho, fica esborrachado debaixo do rabo da senhora, mas ele tira um alfinete do bolso e espeta-lho com toda a força! Aiiii, o que é isto, o que é isto”, diz ela aos gritos. E é então que vê o Luízinho pequenino, pequenino, todo zangado a olhar para ela. Farto-me de rir a imaginar a cena.
E não é, que entra sempre uma mulher gorda, “Olha vês, foi aquela, foi aquela!”. E eu a acreditar na coincidência.
Mas nunca vejo o Luízinho, porque é pequenino, pequenino, torna o meu pai a dizer.
Quando atravessamos o jardim dos Campos Mártires da Pátria, mesmo em frente à Faculdade de Medicina, é a vez da Bruxa Capucha, a minha história/personagem preferida.
“Vês, ali é a árvore onde ela mora. Dentro daquele buraco grande, no tronco!”
E começa a contar, mil aventuras, em que a Bruxa Capucha me assusta, me ataca, me puxa os cabelos, me grita, me rouba o almoço do cesto, me rapta e me esconde, mas sou sempre salva no final pelo nosso fiel cão preto, o Smog. O Móg, como ele lhe chama.
“Mas quem estava à espreita, com um olho aberto e outro fechado, era o…….. MÓOOG!
Atirou-se à cara dela com as garras afiadas e ela ficou com a cara toda borrrraaada de saaaangue e salvou a menina!” A menina sou eu, penso feliz da vida.
E dou saltinhos de contente, rindo-me que nem uma perdida, que nem a cara toda borrada de sangue da Bruxa Capucha me intimida.
Consigo mesmo imaginá-la a fugir do Smog, o meu enorme e lindo rafeiro preto, o meu cão herói, que já foi para o céu e que me socorre sempre nestas incríveis histórias, cheias de imaginação, contadas anos e anos, repetidas vezes sem conta, como se fosse a primeira, naquele tempo em que ele me levava todos, todos, todos os dias à escolinha.
Sempre de mão dada com o meu paizinho, como ele dizia.