quinta-feira, 26 de novembro de 2009

meu o início, vosso o final #1

Congelo sempre mirtilos no inverno. Só assim posso utilizá-los durante todo o ano em marmelada, sumos e bolos. Quando eu era criança, o meu avô contou-me numa das suas muito fantasiosas histórias, que existia um reino de princesas do gelo, exímias amazonas e caçadoras nocturnas, com uma visão apuradíssima, devido aos vinhos tingidos com mirtilo.
Caçavam pirilampos incandescentes, pó incendiado e desperdiçado nas caudas das estrelas cadentes e velas voadoras, para iluminarem o seu reino nos invernos sombrios das montanhas onde vivam.
Um dia, encontraram um mirtilo descolorado. Muito infeliz e sozinho, esmagado numa bola de neve. Olharam para ele com espanto e...

...e agora, caros leitores do meu blogobairro, continuam vocês a história. Aqui ou no vosso blog.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

complicadas, nós? #3


Todos temos códigos corporais, de linguagem, de vestuário. As almas masculinas mais desatentas - quase todas por sinal - evitariam muitos constrangimentos, desarranjos, acaloradas disputas, enguiços, polémicas e quezílias até, se prestassem mais cuidado a algumas das expressões, que nós mulheres emitimos atempadamente.
Assim, muito seria poupado se tomassem em atenção simples frases, proferidas em tom escarninho como: Esquece! Não tenho nada! Deixa que eu faço! Obrigada, eu resolvo!
Queridos homens, desatenções fatais como estas, leva-vos irremediavelmente a escutarem a frase das frases: Precisamos de ter uma conversa!
E neste tipo de conversas, já sabem quem é que ganha sempre...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

exercício #2: suspense?


Precisava de se isolar. Deixou-se ficar para trás, naquela desordenada cozinha cheia de suja louça, encavalitada num exercício de equilíbrio pouco seguro. As luzes já estavam fracas, pastosas e arrastadas, como aqueles sonhos que não terminam, mas conseguiu distinguir num canto escuro, a solidão de uma única laranja ainda por descascar, esquecida à sangria de champanhe.
Retirou do suporte uma faca afiada, daquelas de lâmina luzidia e reflectora, que fazem suster a respiração se empunhadas com destreza. Pôs-se a observá-la com cuidado, subindo-lhe à ponta dos dedos uma tensão nervosa, rogando-lhe que a usasse.
Lapidou a fruta tímida e descolorada, primeiro de forma subtil e delicada, mas à medida que a acústica do silêncio fazia ouvir os silvos do facalhão na bancada de aço inoxidável, fazendo clara concorrência com as estridentes buzinas dos carros, lá fora no vendaval da noite, ele entusiasmou-se e em três golpadas certeiras, desfez carrascamente o aflito fruto em pedaços, provocando-lhe um desmaiar fatal de sumo escorregadio.
A inexperiência fê-lo falhar o último golpe. E no chão de mármore branco impoluto, misturaram-se numa dança lenta, a espessidão encarnada do sangue fresco da sua mão,
com a seiva doce da vítima.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

crónicas de graça # 4


Viajar ou Turistar

O turistar é assim a modos que um exercício de parolos. Uma espécie de obsessão de multidões. Que sobem e descem a torre Eifel num frenesim dos diabos, levam à letra aquela de ir a Roma e não verem o Papa, caem na esparrela da compra de souvenirs nos pontos hiper-turísticos, crêem que encontraram numa loja recôndita, uma das chagas de Cristo, um pedaço do Muro de Berlim, uma página inédita do diário da Anne Frank e prestam um culto mórbido, a canecas com a cara da falecida Diana. Tudo arrumadinho dentro de um saco de lona, com República Dominicana a letras garridas.
São inofensivos. Mas muito felizes, já o testemunhei. Acho-lhes um piadão e por vezes junto-me: também tenho uma t-shirt branca com o I Love NY, caramba!
O verdadeiro turista almoça e janta nos restaurantes de junk food, parece maluquinho na conquista da foto da praxe, com o monumento mastodonte bem ao centro e a sua figurinha de sorriso imbecil lá pespegada,
cheia de malas à tiracolo e ainda o saco plástico do duty free.
A sua maior ambição, é portarem-se como um japonês na Europa: aglomerações de gente pequenininha e morena, sempre a sorrir e de passinhos apressados. Pessoinhas miudinhas, que se nos atravessam na frente da lente, quando finalmente conseguimos focar a imagem ideal. E nem dão conta do estrago, seguem em frente, sôfregos, proferindo um encadeamento
de frases totalmente onomatopaicas, ditas em tom samurai. Sem pausas para respiração.
São os melhores clientes das excursões organizadas; carregam três ou mais gadgets ao pescoço; observam tudo de corrida e de esguelha com o olhar mais vivo que já vi; acenam com a cabeça a cada explicação e clicam dez fotos da mesma imagem.
Ora bem, eu também turisto alguma coisa, principalmente se não conheço o sítio. Não dou é muito nas vistas, apesar de ter tiques parolos, isto é: se eu vou a um local que nunca visitei, cá ou lá fora, eu quero saber de tudo: vejo e revejo blogs de viagens, google maps, sites oficiais, links vários. Vou do consulado à junta de freguesia; já para não dizer que fico íntima de todos onde busco informações. A páginas tantas, já sou eu a dar dicas aos turistas: uma perfeita parola, portanto.
Há um senão, raramente me meto em excursões cheias de gente. Depois
é assim tudo muito à vontade, levamos encontrões, sentam-se quase ao nosso colo, oferecem-nos pastéis de bacalhau, dançam o fandango, beba lá uma pinga oh vizinha... e eu que não gosto nada de vinho de garrafão. Manias.
Outra característica do verdadeiro turista, são as compras. Aí, alto lá: sou imbatível. A rainha das parolas. Não há loja que me escape: da boutique à livraria, do mercado à feira de rua, das lojas de chocolates e compotas, às de chás e cafés, passando pelas lojas de souvenirs dos museus e fundações. E as papelarias e artigos de escrita? Oh senhores, entro em ebulição.
E postais? O que eu trago de postais? Mas Patti, já tiraste duas mil fotografias, para que queres tu tantos postais?
Não percebem nada.
Tem lá algum jeito uma pessoa turistar e não tirar um dia inteirinho para as compras? Um dia e meio, vá. Na pior das hipóteses.
Até ficava maldisposta, poderia dar-me uma apoplexia, uma crise de identidade, uma fraqueza no meu Eu: não saber quem era, perder o rumo, assim, no meio do estrangeiro!
E depois, a segunda mala que levo sempre comigo quase vazia, tornava à pátria cheia de quê? De ar? Que desperdício.
E não preciso de companhia, nem incomodo ninguém. Vou muito bem sozinha.

barcelona, foto minha

Mudando o tom para algo mais repousante e antes que ao meu querido parceiro, lhe dê uma travadinha depois de ler o que escrevi acima, direi que viajar, é outra coisa caros leitores.
Eu viajo por defeito, isto é, passeio-me sem rumo, calcorreando ruas e passeios, praças e jardins. Faço-o por costume. Veio-me no adn.
Gosto de olhar para cima; do meio para cima. Observar os traços dos prédios e das casas, as águas furtadas, ver onde chega e bate a copa das árvores, espreitar as cortinas das janelas mais altas,
ver quem lá mora e que vigia os que passam em baixo, sem saber que também é notado.
Os espelhos da luz. A diferença dos efeitos que ela provoca. As fugas das
gelosias.
Este meu viajar-passear-desfrutar sem norte, é feito de forma mais descontraída, sobretudo nos locais que já conheço. Nos sítios de que mais gosto e onde posso vaguear e me perder, na expectativa semi-secreta de encontrar alguma coisa que ainda desconhecia e que me tenha escapado de outras viagens. E quase sempre encontro. É o usufruir sem compromisso que me atrai, o inusitado da surpresa, o prazer do destapar ainda mais.
Viajar assim, é um estado de zona de conforto, de quase repetição mas com mais bagagem para ir enchendo a memória. Será isso, talvez: um exercício de memória que carrego sempre para onde vou. Sinto muitas vezes que sou o que sou, pela memória que trago.
E depois cair no lugar comum das recordações. Lembrar os locais, os cheiros, as pessoas, a comida, a temperatura, o chão, as vozes. Os pormenores. Falar de como foi a vida, vivida noutro tempo. Noutro lado. Mesmo que esses tempo e lado, tenham sabido e durado pouco.
Mais um pedaço para a memória, registado no meu terceiro braço: a máquina fotográfica.

sagres, foto minha

E o Carlos, o que tem para nos contar?

Crónicas de Graça #1, #2, #3

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

exercício #1: afrodisíaco?


A luz baixa e insinuante e o odor íntimo que vinha do forno escaldante, convidavam à descontracção. Com claros movimentos preliminares e toques profundos, plenos de calma lânguida e dedicada afeição, ia ele desembaraçando-se da pele viva que envolvia aquela apetecível peça de fruta fresca.
Os suspiros silvados que vinham da bancada de inox, despertaram-lhe sensações de entusiasmo e excitação animal. Já ofegante, golpeou três vezes o fruto despido, penetrando o gume afiado da sua lâmina até ao fundo.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

capital nacional do cavalo


É só clicarem na foto.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

no confessionário aos 40 #4


Quando escrevo aqui ou noutro lado qualquer, não sei se me repito, se reproduzo memórias, ou se estou a viver duas vezes.
Poderá ser esse um dos mistérios da palavra escrita.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

[17] boa semana


Até daqui a uns dias. Vou ali e já venho.
De capote, samarra, camisa de quadrados, chapéu e botas altas. Castanhas e água-pé.
É a estreia da Beatriz
no Largo do Arneiro, na capital portuguesa do cavalo, numa apresentação de éguas afilhadas da ilha Terceira e num carrossel de quatro elementos. Espécie protegida. Raça Pónei da Terceira.
E a excitação é grande. Ao rubro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

crónicas de graça #3

António Lobo Antunes

Provavelmente este texto, não terá perfil de post, seja lá o que isso for. Deveria ser lido com calma. Contra a correria dos dias que carregamos. Com a disponibilidade de uns bons minutos. Com tempo para se poder voltar atrás, num ponto ou noutro. Com a atenção necessária para se ouvir ALA. Para pensar.
São palavras de admiração que há muito se impunham
. Para mais agora, que ALA comemora os 30 anos da publicação dos seus dois primeiros livros: Memória de Elefante e Os Cus de Judas.
Vendo bem, este será até um post muito curto, pois a sua vida é a sua obra, e a sua obra a sua vida. E milhares de horas, foram aquelas que passou a escrever. E que ainda passa. Não cabe tudo aqui. Seria mesmo impossível.
Este texto não tem qualquer pretensão, a não ser o enorme prazer que me deu fazê-lo, assim tanto, como tenho em estudar, ler e ouvir António Lobo Antunes; mesmo quando ele diz que só fala banalidades: "Tenho a sensação de que só digo banalidades. Eu sou um homem banal. Um amigo meu dizia-me que penso como um génio, escrevo como um bom escritor e falo como um débil mental".
(Uma longa Viagem com ALA, de João Céu e Silva
Setembro de 2009).


feira do livro 09, fotos minhas

Querido António,

Ainda não lhe tinha dito e se calhar nem vai ficar nada satisfeito de saber, pois o António diz sempre que o seu melhor livro é o último que escreveu e já vi, que nem vale a pena tentar falar consigo da sua literatura anterior, pois não faz caso algum de nós. Ainda com a agravante de repetidamente nos dizer, que já nada tem daquele homem dos primeiros livros. Mas mesmo assim, eu gostava tanto, mas tanto de ter lido o livro que o António escrevia durante os anos que esteve em África e que provavelmente deve ter destruído...
O livro a que deu o nome de Voo.
Ontem acabei a primeira parte do Voo, comecei a segunda. Após várias tentativas, julgo ter encontrado o que precisava. (...) escrevo literalmente de manhã à noite, numa febre imensa. Reli e corrigi a primeira parte, que está pronta e embalada. Quando a leio irrita-me. Quando me lembro dela gosto muito. Onde estará a verdade?
(cartas de angola 1971)
...
Havia um livro muito comprido que praticamente era o embrião de todos os que foram publicados. Escrevi-o enquanto estive na guerra, e muito antes disso, para aí durante sete ou oito anos.
(entrevista a mário ventura, 1981)
...
Depois passei dez anos com um romance - antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra - e fazia romances que não publicava.
Acho que as miúdas têm um. Esse romance era enorme - três vezes o Fado Alexandrino -, porque na guerra eu escrevia todos os dias para mim e isso ajudou-me muito. (...) Eu lembro-me que mandava bocados - era tudo uma merda - e a Zé achava aquilo uma maravilha, para altos voos. Às vezes, eu acreditava, mas na maior parte das vezes não. Estava consciente de que não prestava e que não era o que eu queria fazer.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Mais aquele outro, a que o António pensava chamar Depois de Júlia. Que foi feito dele? Chegou a começá-lo?
Meu querido amor
DEPOIS DE JÚLIA: título do calhamaço que se seguirá ao Voo, que eu acho porreiríssimo. Diz o que pensas. Entretanto a carroça pôs-se a andar outra vez. (...) E logo a seguir, depois de um intervalo para respirar, começo esse tal Depois de Júlia (que queres, adoro este título) de que tenho a ideia. Gostas do nome? (...) Gostas de Depois de Júlia, não gostas?
(cartas de angola 1971)

E tantos outros livros - mesmo muitos - que o António deitou para o lixo, antes de o terem publicado pela primeira vez.
As coisas que escrevi antes foram para o lixo. Sempre fiz autos de fé periódicos das coisas que escrevi. Até os rascunhos do novo livro que estou a escrever rasgo com frequência.
(entrevista a josé jorge letria, 1980)
...
Livros, houve uma série deles antes do primeiro ser publicado, e nem chegaram a ser vistos por ninguém. Escrevia-o e deitava-o fora.
(entrevista a mário ventura, 1981)
...
Acabava os livros e deitava-os fora ... Não eram bons ... Tenho pena de um - não sei o que lhe aconteceu - que foi escrito antes do Memória de Elefante, mas não sei o que aconteceu a esse livro.
(um
a longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
E outros também foram para o lixo. Acabava e deitava-o fora, porque a publicação nunca me interessou muito. Eu queria era escrever, porque enquanto escrevia estava mais equilibrado, estava melhor comigo.
A partir da altura em que o Daniel Sampaio leu o manuscrito (Memória de Elefante), deixei de deitá-los fora.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Lendo as suas cartas de guerra, sente-se de imediato, já nesta altura com vinte e alguns anos, a presença constante do cruzamento da angústia-prazer, assomando-lhe à mão que desenha as letras, e à cabeça que vela por essa mão.

O pior para mim é que escrever não me dá prazer nenhum! Mas não posso passar sem isto. Os tormentos do parto tiram-me a sensação de estar a fruir o que quer que seja. Mas é horroroso estar sem escrever. Falta-me o ar. É difícil explicar, mas a sensação de frustração é imensa. E quando dou por mim estou a deitar palavras no papel com a ternura de quem deita um filho.
(cartas de angola 1971)
...
É tão misturado com angústia e aflição, durante um livro passa-se por uma gama de emoções muito dispersas.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Faz trinta anos que o António foi publicado pela primeira vez. É impressionante que o Memória de Elefante e Os Cus de Judas, continuem a vender-se tão bem como em 1979. São best-sellers, os leitores gostam muito destes dois livros. São uma referência na sua obra.
Eu hesitei muito antes de publicar o livro (...).
Por outro lado, há todo o problema da escrita, que são muitos anos de escrita, hesitações, de dúvidas, de reescrever, muitos anos à procura de uma forma. Acontece que, pela primeira vez com este livro, eu senti que tinha encontrado uma maneira pessoal de dizer as coisas.
(entrevista a rodrigues da silva, 1979)
...
Escrevia há muitos anos, mas nunca tinha pensado em termos de publicação. Os meus amigos nem sequer sabiam que eu escrevia, nunca pensei em fazer uma carreira literária. Por razões várias mostrei Os Cus de Judas a um amigo, um médico, o Daniel Sampaio, que não tinha nada a ver com o meio das letras. Só que ele impressionou-se e tratou de tudo, levou o original ao editor, etc. (...) Memória de Elefante foi o primeiro a sair. Era, no entanto, um livro em que ninguém acreditava, saiu nas férias, em Julho. Quando vim, em finais de Setembro, a primeira edição estava a esgotar-se. Achei estranho, o livro fora lançado por uma pequena editora (...). Foi tudo de facto muito surpreendente pela forma como aconteceu. Depois as edições começaram a sair umas atrás das outras.

Os Cus de Judas, apareceram depois. Se não fosse o Daniel nunca teria publicado nada, teria continuado a escrever como até então, nem sequer para as gavetas, porque não tenho gavetas a não ser as da roupa. Rasgava o que ia fazendo, nem sei, afinal porquê.
(entrevista a fernando dacosta, 1982)
...
Sim, ninguém me queria, mas eu não estava preocupado porque escrevia sem ter pensado em publicar. E achavam que aquilo não era um livro, que era uma coisa muito estranha!
...
Se eu fosse reescrever o Memória de Elefante! Não o posso fazer porque é um livro de um outro, eu já não sou aquele homem, aquele rapaz.
...
Levei anos a levar pancada das pessoas que escreviam nos jornais, dos críticos, disso tudo, e nunca percebi porquê. Mas era pancada, pancada mesmo, porque não me aceitavam. Agora compreendo, pois vendo as coisas no contexto da época, o Memória de Elefante era algo completamente novo numa altura (pós-25 de Abril) em que toda a gente esperava obras-primas que estavam nas gavetas e nada foi publicado.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
(...) E agora olhando para aquilo, porra, eu escrevia aquilo tudo outra vez ou deitava fora, nem publicava. E espanta-me, pois o livro fez agora nova edição de bolso, e continua a vender. É estranho... O que eu vou deixar é isto. Palavras ...
Um autor que ninguém sabia quem era! Lembro-me de ele (o editor) dizer: É melhor tirarmos o Antunes, Antunes é muito feio. Fica só António Lobo.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)


Esse ser-escritor que traz consigo desde sempre, tem vezes que dá mostras que lhe dói, outras que lhe causa uma alegria desmesurável. Um não sei quê que parece só querer minorar, quando o António é o António Lobo Antunes, aquele que assina os livros.
(...) há horas mágicas, há momentos em que se está a escrever e a chorar e não é por ser triste ou alegre, é porque era mesmo aquela palavra que nos visitou e fomos habitados por outra coisa. esses são os momentos mágicos que acontecem nas primeiras versões (...). Nas primeiras versões, sim, há momentos em que, como dizia o García Marquez, parece que temos o berlinde na mão.
(...) O sofrimento não sei de onde ele vem. Lembro-me sempre da minha mãe dizer: "Não percebo porque é que estás sempre triste. Nasceste com tudo". A relação comigo próprio é muito conflituosa, é mesmo conflituosa!
(...) E é tudo tão breve que não temos o direito de ser tristes, porque é uma honra estar vivo. Senti isso depois da operação, quando pensava "afinal respiro" e comecei a tirar prazer das coisas: de estar sentado, de andar e inclusive de respirar, porque antes custava-me cada vez que tossia. (...) É tão bom respirar, e estar vivo é um privilégio.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
Prazer dá-me sempre, mas foi tão difícil. É tão misturado com angústia e aflição, porque durante um livro passa-se por uma gama de emoções muito dispersas.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)
...
Escrever é a minha razão de viver, a minha alegria e também sofrimento, mas é a minha sina.
(entrevista a carlos vaz marques, 2008)

Mas tanto a alegria como a dor da escrita, me parecem deixá-lo só.
Dou-me com muito poucas pessoas. Até porque este tipo de vida é um bocado incompatível com uma vida social. preciso de dez, doze horas para escrever. Não vou ao cinema, a não ser com as minhas filhas, não vou a cocktails, não faço vida social.
(entrevista a ana sousa dias, 1992)
...

(...) Estou todo o tempo com o livro.
Sou uma pessoa muito fechada, tímida, com poucos amigos, não sou muito sociável, não vou a bares, nem a lançamentos. Nunca tive grandes relações com pessoas do meio literário e, normalmente, não vou nessas excursões.
(entrevista a sara bello luís, 2001)
...
Eu sempre fui assim, a minha mãe diz que eu sempre brinquei sozinho e , no entanto, tenho a felicidade de ter bons amigos. Eu gosto de estar sozinho.

O sol dá-me uma alegria muito grande, mas depois vou acumulando culpabilidade, a sensação de que ... sei lá, de que fui acumulando erros ao longo da vida. (...) E isso é complicado para mim. É a primeira vez que estou a falar nisto, nestes períodos entre os livros... Quando estou com um livro, estou tão ocupado com o livro, mas quando fico sozinho comigo mesmo, às vezes é complicado.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

A sua obra estabeleceu rupturas com o romanesco do século XIX, renovando-o, impondo-lhe um novo género; a sua técnica narrativa, é um dos seus maiores encantos e consiste num desafio constante às nossas expectativas e à literatura actual: as micro-narrativas, as vozes, o exercício constante da memória. O kitsch; o seu apurado kitsch. Esse silêncio que tenta trazer para a escrita, a sua obsessão na procura de uma obra perfeita...
E ainda assim insatisfeito, António?

Porque quero sempre um bocadinho mais. Ir mais longe. Perceber como é que se pode fazer melhor. Eu não quero fazer pior.
(entrevista a luísa jeremias, 2001)
...
(...) mas o problema já não é escrever melhor do que os outros, é escrever melhor do que nós, ir mais fundo, tentar aproximar-me do livro ideal - o que trazemos cá dentro - e isso é difícil.
Já justifiquei a minha vida por ter escrito meia dúzia de livros assim e devia sentir-me satisfeito com isso, mas penso que poderia ter feito mais...
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
Vamos lá a ver se ainda sou capaz de fazer alguma coisa de jeito.
É um medo. É um medo, João.
...
Mas queria ir mais fundo neste livro (Arquipélago da Insónia). Isso quero sempre, aproximar-me, sabendo que nunca vou chegar.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)

Sabe António, vejo a sua obra como um tratado de Portugal, dos portugueses, da nossa forma de ser, viver e sentir. Penso sempre que se um estrangeiro quiser entender esta gente lusa, deveria pegar nos seus livros. Como outros pegaram em Camões, Eça e Pessoa.
Escreve-nos por dentro, sabe-nos da alma. Conhece-nos os silêncios.
Na última vez que estive fora, na Finlândia, dei por mim a ter enormes saudades de Portugal. (...) Para um homem como eu, meio-brasileiro, meio-alemão, é o país onde quase não venho e onde sempre estou.
(entrevista a baptista-bastos, 1985)
...
(...) penso que não seria capaz de viver sem a língua portuguesa, sem ouvir falar português. A minha escrita está muito enraizada aqui, nestas gentes, neste país.
Percebo muito bem que os emigrantes só pensem em regressar, mesmo que seja para fazer casas de azulejo: há um charme lento neste país que é irresistível.
(entrevista a miguel sousa tavares, 1988)
...
Das pessoas, da língua, da cor do ar. A gente só se lembra disto quando está no estrangeiro. Pensamos que não temos sentimentos patrióticos, mas temos. E são muitos claros no estrangeiro.
(entrevista a luísa jeremias, 2001)
...
Eu tenho muito orgulho do meu país, muito, e cada vez gosto mais do meu país, cada vez gosto mais dos portugueses e cada vez mais sinto que é para os portugueses que eu escrevo. Gosto de Portugal, gosto dos seres da minha terra, gosto do clima, gosto da luz da nossa terra e cada vez mais sinto que é aqui que eu pertenço. Tenho este orgulho! E quando dizem que Portugal é um país pequeno e periférico, fico furioso, porque para mim é grande e chega-me perfeitamente, não preciso de mais terra.

(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...
(...), isto é a minha terra e cada vez estou mais preso a ela.
(uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2009)


São 21 livros publicados. Três livros de crónicas e centenas de crónicas (já sei que não gosta muito delas). É o autor português mais traduzido. O mais premiado. Letras de músicas.
Desde criança que são horas infinitas de escrita e contudo, receia perder a mão.
Mas entre dois livros sinto-me sempre mal: receio não ter ideias ou não conseguir concretizá-los...
(entrevista a luís almeida martins, 1988)
...

(...) medo que tenho de não ser capaz de escrever de novo, um problema que aparece a cada livro que acabo. Será que eu serei capaz de fazer um próximo livro? Ninguém que escreva a sério vai ser capaz de o dizer. Também é uma espécie de negociação com a morte, deixa-me escrever mais um, mais dois, mais três...
( uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2007)
...

(...) porque cada vez mais penso que - às vezes passa-me isto pela cabeça - uma pessoa nasceu com um determinado número de livros e, acabando isso, a sensação é de medo de estar a rapar o fundo do tacho. De não ter mais nada, ou de começar a imitar-me. A fazer uma espécie de paródia de mim mesmo.
( uma longa viagem com ala, de joão céu e silva, 2008)



Somos homens simples que lidam com uma criação superior a nós.
(antónio lobo antunes - Boston, 2008)
Obrigada António, tem sido um enorme prazer.


E o que tem o meu querido parceiro, para me dizer do Saramago?

Crónicas de Graça #1, #2.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

[3] dizer bem


Ainda há projectos meritórios. Está em curso um projecto digno de louvar, chamado Limpar as Florestas Portuguesas num só Dia. Uma cópia de algo feito na Estónia, com imenso sucesso, no ano passado. Vejam o vídeo, em apenas cinco horas todas as florestas ficaram limpas.
Existem já alguns milhares de voluntários para a concretização desta acção, mas serão precisos muitos mais.
O dia escolhido será o dia 20 de Março de 2010.
Sempre vi na blogosfera e aqui no meu blogobairro, variadíssimos posts e também comentários de bloggers, preocupados com o que está a acontecer ao meio ambiente e ao nosso planeta.
Ora têm aqui a vossa oportunidade, para que todos possam fazer alguma coisa. E é em Portugal. E basta arregaçar as nossas próprias mangas. E pormo-nos ao trabalho.
Pais, filhos maridos e mulheres, primos, tios e avós. Uma tarefa exemplar para os nossos filhos.
Vamos divulgar este projecto, consultar o site oficial aqui e fazer o registo aqui.
E increvermo-nos também.
Ah e era tão bonito ver este projecto divulgado em mais blogs ...

terça-feira, 3 de novembro de 2009

é o jornal a Bola, s.f.f. #2


Há objectos nas nossas casas, que mesmo alterando por alguma razão a sua aparência, marca ou tamanho, nunca, mas nunca mudarão de lugar. O seu território, o sítio onde pertencem, será eternamente, para todo o sempre e até ao dia do juízo final, o mesmo local do costume. Estão hoje arrumados onde estiveram nos últimos dez, vinte ou trinta anos.
Assim, queridos homens, altercações de voz grave, para mais grave ainda, questões colocadas em tom sobranceiro, perguntas inúteis e dúvidas dramático-existenciais do tipo, onde raio está a manteiga agora, não encontro as minhas meias, o que é feito do pacote do leite, ou mexeste no meu Record, serão totalmente desnecessárias.
Todos esses objectos estão onde sempre estiveram. No mesmo lugar de sempre. Geralmente em frente dos vossos lindos olhos. Ao alcance fácil de um estender do braço. Ali a olharem para vocês. À mãozinha de semear.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

parasimpattias #1


Exercício: Um velho está em pé numa paragem de autocarro, com uma bengala na mão e um folheto na outra. O dia é frio, chuvoso e triste.

(Narrador na pessoa)

Há uns dias que reparo nele. Olhos entusiasmados - que desejo sinceramente, já tenham tido um destino feminino de rosto meigo. Hoje procuram fixar-se num ponto, num sentido, em algo que não surge. E pela tristeza que pariu este dia, desconfio que não surgirá.
Vem lá do fundo da minha rua, alheio aos primeiros chuviscos, num passo leve mas pesado, como se sentisse profundo o resto do tempo que ainda lhe falta existir. Todos os dias traz a bengala consigo - pega de marfim, cabeça-de-leão - mas não se apoia nela; afasta os empecilhos do caminho com o extremo pontiagudo de aço frio, desviando com a destreza de um profissional de hóquei, todos os estorvos e obstáculos que o impeçam de chegar à baliza: aquela vulgar paragem do autocarro. Igual a tantas outras.
Eu, do outro lado do passeio, sentada na esplanada observo-o no cumprimento de um bom-dia a todos, de sorriso na cara.
Tenho-o como educado, pois repete teimosamente o ritual daquela saudação - em desuso - e parece não se importar com a ausência de resposta. Nem o cão vadio lhe sacode a cauda; só pensa em dormir o pobre animal, exausto da procura da noite: vasculhar
no lixo dos outros, o luxo de uma refeição decente.
O meu velho, aconchega a ruça flanela axadrezada ao pescoço sulcado de passado e esfrega as mãos, termometrando o frio que já vem chegando mais áspero, nestes primeiros bateres de outono. Leva a mão ao bolso do casaco e ...
E depois vem aquela parte que me intriga, que me faz esperar pela sua chegada estes dias, que me espevita a curiosidade; que quase me envergonha, a mim mais a esta minha observância invasiva. Estranho. Não sou nada de meter o nariz na vida dos outros. Acho que simplesmente só gosto de pessoas, de reparar no que os outros não vêem, de imaginar o que há para além do óbvio. Do pormenor. Até a palavra pormenor é bonita: p-o-r-m-e-n-o-r.
Retira o folheto do fundo do forro. A folha do costume; gasta, vincada nas dobras brancas, já sem tinta. Afina o aparelho na orelha. Lê e relê aquele papel. Vira-o e revira-o. Cheira, afaga, sente-o junto do ouvido.
Não distingo nem letras, nem figuras, muito menos o assunto, mas é de certeza o mesmo folheto que lhe tem despertado a atenção todas as manhãs. Também não será hoje que descubro do que se trata, mas aquele seu aproximar da folha do ouvido para lhe saber o som, mexeu comigo.
É então que decido presumir e ponho-me a fantasiar!
Trata-se de uma pauta de música. Está resolvido. Com o seu peculiar traçado, desenhado com bailadores símbolos pretos,
de perninhas, rabinhos e cabecinhas ágeis pintadas nos extremos, que executando passos de dança, cantam uma toada alegre. Uma marcha musical com mais de cento e cinquenta anos. E eis que o meu velho ergue a bengala como uma batuta, iniciando a direcção de uma orquestra obtida nos sons da manhã.
Coloca-se na frente da paragem de autocarro e vai por ali afora, de bastão com cabo de marfim no ar, regendo a parada na execução da sua peça musical. Persegue-o de imediato o rafeiro, animado com aquele sopro de vida, soltando latidos num ritmo cadenciado, e logo dobra a esquina juntando-se a eles, um jovem de iPod, que desperto do marasmo habitual, marca o compasso num puxa e escorrega, com o auxílio dos jeans descaídos, atrás de si surge a secretária de salto agulha, batucando a biqueira sensual no empedrado e abanando os ombros deliciada, depois vem de lá a cabeleireira do salão Peruca Jovem, tesourando o ar com um tac-tac alegre e sonorizado, aparece a mulher da limpeza do armazém dos congelados, empunhando a esfregona e dedilhando nas suas cordas brancas de franjas húmidas, notas de pura sintonia, e os carros apitam, e a menina da farda cinzenta que vai para o colégio dança, as árvores ávidas de pássaros calam-se e escutam-no e até eu, embasbacada com aquela marcha de comemoração, tilinto a colher na chávena do meu café, provocando acústica no copo de água e rumores na lona do guarda-sol, que
ainda há instantes, me protegia do ruído amotinado da rua. Do silêncio ensurdecedor da vida.

Será que é música, o que se passa na cabeça deste velho, Si?

domingo, 1 de novembro de 2009

parasimpattias