terça-feira, 13 de maio de 2014

quarto com vista sobre...


O senhor do segundo esquerdo tem uma caspa belicosa, daquela que dá luta acérrima, salpicando gordurosa os ombros do blazer azul. Se resulta para o Ronaldo, resultará para ele, afinal lá no escritório também lhe depositam o salário no BES.
A mulher de cabelo liso e saudável, fácil de desembaraçar, não usa creme. Nem nada. Como tem pouco brilho, tenta agora as gotas que lhe falou a cabeleireira do shopping. A ver vamos. Se não resultar, também não se rala. Está mais preocupada com os valores desacertados que lhe apareceram no último hemograma.

No segundo direito é tudo a meias. Opta-se pela marca branca. Divide-se o champô, o gel e a gilete, até a esponja amarela. São já alguns anos de Lidl, que lhes ensinaram a poupar; quanto maior o frasco, maior o aforro. 
A filha é que não vai nisso; coisas de velhos. O canto esquerdo é dela: champô de morango, creme de leite de aveia para alisar o eriçado dos caracóis e gel de corpo com purpurinas. Agora que vem o verão, tempo de shorts, tops, pops e mini saias, é vê-la desfilar brilhosa e de poros exalantes, entre os corredores dos pavilhões da secundária.

A viúva é do primeiro esquerdo e traz das excursões as amostras desapaixonadas, contendo líquidos apáticos, isentos de um cheiro que as distinga das restantes. Como as viagens que faz. Sempre é melhor do que ficar em casa a sacudir os naperons do sofá, diz no café.
Quando foi a Paris é que as trouxe bonitas. Frasquinhos gordos com rótulos vintage - dissera a companheira de quarto - aromatizados com cheiros da infância, de quando brincava lá na terra, nos campos floridos da casa grande.
Ainda hoje os guarda. Intactos. Abre as mini rolhas de cortiça e inspira de tempos a tempos, para não se esquecer não sabe bem do quê.

When people run in circles, it's a very, very mad world, canta frouxa no duche a inquilina do primeiro direito. Arraigada a um namoro arruinado lá nos 80's de que nunca sarou, tem à vista do olhar o último frasco baço do Eau Jeune de limão e o Tokalon cor-de rosa.
Distraída há muito num novo século, compra indiferente no supermercado os pantene, os nívea e os élseve desta vida. Nem dos cupões se serve.
Amaria antes conseguir cantar o You shoot me down, but I won't fall, I am titanium.
Mas não consegue.

Não tenho tempo de saber o que se passa no rés-do-chão. Fica para a próxima, saber o que mora no parapeito das janelinhas dessas casa-de banho.
Desta grande sala panorâmica, chamam o meu pai para a consulta e eu sigo-o, anestesiando atrás dele o seu Aramis de sempre.