O assunto da morte sempre me foi odioso. Evitei-o de todas as vezes, fiz de conta que era um não-tema, neguei-me a pensar nele, fingi não saber do que se tratava - e na verdade não sabia.
Mas sei agora. Que morri. Morto e matado de todo.
O tema é mórbido, bem sei, mas é que se passam tantas, mas tantas cenas depois de um homem estar morto, que nem sei por onde começar. O positivo da questão, é que agora tenho a morte toda pela frente.
Primeiro, quero já aqui esclarecer e acabar com boatos e injúrias, sobre as larvas serem nojentas. Nada mais falso, caros vivos da silva. São os
bicharocos mais simpáticos que existem à face da terra, ou melhor nas suas profundezas. Vermes companheiros e sempre muito presentes, quer na limpeza das minhas unhas dos pés, no vazamento do pó dos meus ouvidos, enroscadas em sonecas profundas na dobra dos meus joelhos, ou a petiscarem os restos gástricos do meu estômago.
Portanto, temos
criaturinhas que comparecem com frequência, na solidão desta minha vida, perdão, morte.
Aqui nas catacumbas deste cemitério de província, onde agora habito, a animação é grande. Não fora alguns ossos já se terem desfeito e posteriormente levados pelas larvas, impedindo-me grandes movimentos ao esqueleto, diria mesmo que por aqui, no reino dos mortos, abunda o reboliço, a agitação e o alvoroço.
Forneço-vos para vos elucidar, uma breve listagem dos nossos afazeres diários:
- Observação e contagem das noites estreladas. Vocês sabem lá os milhares de estrelas que existem no firmamento. Eu estou em quarto lugar nesta prova. É o concurso mais popular do cemitério. É claro, que posição de barriga para cima como nos colocam, também ajuda muito.
- Semanas temáticas: a escassez de visitas ao cemitério; as doenças mortais; a morte-santa; o
halloween; a fauna
necrófoba; como evitar a pá dos
coveiros; os benefícios de uma saudável putrefacção; as vantagens e desvantagens da iluminação das morgues; o peso e o cheiro das coroas de flores; a qualidade duvidosa da madeira utilizada nos esquifes; o péssimo aquecimento na ala das autópsias; cinema de terror.
Mas gostar mesmo, mesmo, é da semana de beleza e dos cuidados com o envelhecimento da imagem: como manter esbelto o seu cadáver.
Aprendi conselhos
utilíssimos e cá vão eles:
esfoliação das peles mortas, com o ancinho do jardineiro, dez vezes ao dia; evitar a absorvência das flores apodrecidas do funeral, combatendo assim um crónico e fedorento perfume em todo o corpo, ou melhor, do que resta dele; reciclar a argila contida na terra que nos sobrecarga, para a tonificação da
ossatura existente; aproveitar e extrair das longas raízes das hortas vizinhas, que por nós se emaranham, as suas propriedades anti-oxidantes, tão benéficas ao combate dos danos provocados pelos radicais livres.
E agora, aproveitando a oportunidade desta minha crónica no mundo dos vivos, pedia-vos encarecidamente que se nesta moda dos referendos, não podiam fazer mais um sobre a prática recorrente das etiquetas no dedo gordo do pé, tão em voga nas morgues dos hospitais.
Eu e a minha letal vizinhança, votamos contra! Aquilo dá um raio de uma comichão.
E tu minha Gi, como te safaste com mais estas letras portuguesas?