terça-feira, 30 de setembro de 2008

perguntas sem resposta [3]

foto sneakpeaks
É só uma perguntinha, básica mesmo. Simples interrogação nascida em mim num repente, após assistir, confesso que boquiaberta, a uma ‘conversa de gajos’, por assim dizer. Daquelas conversas de louras mas ao contrário, do tipo: performances masculinas e aptidões únicas, mulheres e seus formatos e texturas, engates e conquistas e palavrões que não vale a pena referir. Claro que também houve cervejas, bocas giras à empregada, que se pudesse lhes enfiava com os palitos nos olhos e futebol, nos intervalos da lascívia.
Assim e perante esta troca de bestialidades, entre três trogloditas muito machos, mas a quem a mãezinha ainda deve preparar o pequeno-almoço todos os dias, porque os ursos nasceram com uma deficiência congénita, ou seja, falta de alguma massa encefálica, aparece-me a seguinte dúvida: se alguns homens, reparem que eu escrevi alguns, tivessem menstruação, comparavam entre si o tamanho do penso higiénico, para ver quem usava o maior, não era?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

[1] dizer bem

Bom dia, queria marcar uma consulta para a Dra. Isabel M. Que não, que era impossível, que estava a agenda toda preenchida, que só podia ser no final de Outubro e vá-lá, vá-lá, e mais não sei o quê, e não sei que mais.

Ah, mas no fim de Outubro é muito tarde para mim, porque tenho mesmo de fazer este exame importante e já combinei com a Dra. fazê-lo nesta altura. Diga-me então o horário de atendimento para as consultas diárias de urgência, que eu vou aí e espero o tempo que for preciso, paciência. Não posso é adiar o exame e a Dra. sabe disso, pois foi o que ficou acordado entre mim e ela.

Conversa para cá, conversa para lá … olhe, disse a empregada, então vou ver se a consigo encaixar entre dois doentes já para segunda-feira, pode ser? E assim escusa de ficar preocupada com o assunto e resolve-se tudo.

Eh lá! Que estranho. Não refilou comigo, não bufou, não me respondeu se tens pressa vai andando ou viesses mais cedo, ou qualquer coisa tipo, também a mim me dói muita coisa e não me queixo ou até, já lhe disse que não há consulta, quer que eu me transforme em Dra. Isabel?

Não, nada disso. Falou baixo, devagar, nunca me despachou, pelo contrário, ficámos uns dez minutos ao telefone, arranjou-se a consulta de manhã como eu preferia, ficou preocupada com o exame, desejou-me as melhoras, eu aparvalhada, respondi, obrigada pela atenção e ela ainda disse, ora essa! E eu que já estava de garras afiadas e em posição de ataque, tive de me recolher.

Fiquei desconfiada e não era para menos. Então uma pessoa é atendida daquela forma, não tem cunha e consegue uma consulta que parecia impossível e ainda por cima não lhe desligam o telefone na cara a grunhir? Claro que fui à cautela.

Por fora, o edifício é um bocado cinzento, mas já me tinham dito, que o nosso novo Centro de Saúde era um espectáculo, desde as instalações a todos os que lá trabalham. Só vos digo: é um must. São três pisos do melhor que há. O segurança, não usa bigode fininho, não tem barriga, não está sentado a ler o Jornal da Região ou a Bola e diz bom dia. A sério, não estou a gozar. Diz mesmo bom dia! As instalações são excelentes; paredes de tijolo pequeno, com pequenos jardins de Inverno, patamares com vidraças muito altas, corredores compridos e espaçosos, escadas macias de madeira, diversas salas de espera com lugares mais do que suficientes para todos, sala de brincadeira, com cadeiras, bancos e mesas, tudo em ponto pequeno para as crianças, livros e brinquedos a sério, bar e cafetaria, quatro super casas-de-banho, e também para deficientes, atendimento completamente informatizado, rápido, educado e prestável, chamada dos doentes por microfones onde se entende na perfeição o nosso nome e para que sala nos chamam. Nenhum doente diz: o quê? Sala quê? O que é que ela disse? Chamou quem? Maria o quê? Santinha.

Tempo de espera: quinze minutinhos, no máximo.

E a sala de consultas da Dra. Isabel? Então Dra. ‘vivó luxo! E ela riu-se de satisfação. É uma médica extraordinária e já merecia uma sala como aquela, para atender os seus milhares de doentes. Olhe que assim até vale a pena vir cá ter consigo.

Sabe Patti, que os meus doentes mais velhos, ficam a olhar à roda, diminuem os sintomas daquilo de que se queixavam e até se esquecem de parte dos medicamentos que me vêm cá pedir, tal é a felicidade deles ao verem estas instalações. Fazem-me mais perguntas a mim, que eu a eles.

E vocês? Pensam que esta é mais uma das minhas histórias e que agora vou dizer que acordei de um sonho e que morava na Noruega?

Nem pensar, é tudo verdade e aqui mesmo a dois passos da minha casa e vou a pé e tudo.
Só me faltou meter o nariz nos quatro gabinetes de enfermagem, mas tenho aqui uma unha dorida que está a precisar de tratamento.

Estou mortinha por voltar a passear por aqueles patamares envidraçados, até ao topo do edifício, que deixam entrar a luz do dia e ver o céu.

domingo, 28 de setembro de 2008

[25] há coisas fantásticas, não há?



1925-2008
Deixou ainda a sua marca através da Newman's Own Foundation, com a qual financiava várias organizações de caridade e humanitárias. Newman fundou ainda a Hole in the Wall, uma organização que oferecia férias de Verão a crianças de todo mundo que sofriam de doenças graves. (Público)
Ver aqui.

sábado, 27 de setembro de 2008

[11] bom fim de semana!


Iniciou-se na quinta-feira a VIII edição da Feira do Livro Manuseado na Praça da Figueira, em Lisboa.
Todos os dias, das 9 às 20 Horas e até ao dia 18 de Outubro, vão estar disponíveis milhares de títulos de diferentes géneros a preços muito convidativos.
Excedentes de stocks, fins de edição, promoções, saldos, livros com pior apresentação ou pequenos defeitos mas com conteúdo intocável e edições já raras. Em destaque, estarão diversos livros sobre Lisboa numa homenagem cultural à cidade.
Na Feira estarão presentes dezenas de editoras.
E já que estão perto, desçam à Praça do Comércio e aproveitem para espreitar "Os Bolos na Cidade", aqui também.


Hoje comemora-se o Dia Mundial do Turismo e no Porto haverá inúmeras actividades gratuitas, informe-se aqui.


sexta-feira, 26 de setembro de 2008

com abrigo - #5

voluntariado de apoio aos sem-abrigo, aqui.

Ter sido ela, a primeira a saber que o vizinho do cartão do lado tinha morrido, fora uma sorte. Os mortos só levam a roupa do corpo, por isso o carrinho de compras ficaria para si. Até na rua, quem chega primeiro é quem leva vantagem.

E que grande ajuda ia ser. Já não aguentava por muito mais tempo com o peso de toda aquela sacaria, que acartava em cima dos seus sessenta e cinco anos. Mas não se podia desfazer de nada, pois guardava coisas valiosíssimas que todos cobiçavam.


Feliz com a sua sorte, começou a arrumar todos os tesouros no carro novo.

Ali bem à mão, enroladas em voltas mil e num cuidado extremo, estavam as suas valiosas jóias, as guitas, cordas e cordéis que juntava há muito tempo. Eram essenciais à sua sobrevivência na rua, pois prendiam-lhe os sacos de valores uns aos outros e à sua perna quando ia descansar, e amarravam fortemente todos os seus cartões-colchão, que a impediam de sentir o frio da pedra mármore, lá no vão de escada que lhe servia de quarto.


Eram os melhores cartões das redondezas e conseguia-os ali, na tipografia do beco, porque o rapaz das entregas lhe tinha dito uma vez, é tão parecida com a minha avó!

Encadernavam-se obras finas em caixas especiais, que ele lhe dava quando tinham defeito. Eram revestidas por uma película fofa e branca e ficavam sempre para ela.


Espalmou-as e ordenando-as por tamanhos, enfiou-as no fundo do carrinho. Por cima vinha o enorme saco de desporto, já sem cor definida e de pegas rasgadas, mas onde lhe cabiam todos os trapos de Inverno; camisolas grossas, calças e saias, o sobretudo e a gabardina e três camisas de flanela mole. Não gostava de bagunça e por isso a roupa interior guardava-a à parte, no saco de fecho que pediu na boutique da moda, onde iam sempre as miúdas de agora. Era lindo, com enormes flores amarelas.


Então Jú, apanhaste-lhe o carro das compras? Olha, eu cheguei no fim e só consegui isto. O ‘isto’ era a garrafa de vinho já vazia. Larga o vinho Zé, que ainda morres cedo.

E continuou nas arrumações da casa.

Sapatos, além dos calçados, só tinha mais uns que não lhe serviam. Paciência, alguém os havia de querer e nessa altura trocaria por algo que lhe fizesse falta, como um gorro para o frio ou outra manta velha.

A caixa da louça que lhe custava tanto a acartar, podia agora ser arrumada ali na perfeição. Fizera bem em não se desfazer dela como lhe insistiam em dizer, oh Jú, larga isso aí num canto, não te serve para nada e andas toda torta com esse carrego todo. Eu é que sei da minha vida. Isso é que era bom! Queriam era ficar com os tarecos dela, que tanto lhe tinha custado a juntar; talheres, dois copos, um prato, duas tigelas rachadas, um púcaro de alumínio, uma caixa de plástico com tampa e tudo! E a jóia da coroa, o termos de café ainda do tempo de quando tinha casa cheia de família, que também já fora unida.

Tornou a dobrar com muito jeito os já e sempre bem arrumados sacos de plástico; uma colecção de grandes, pequenos e médios. E dentro do maior deles, apertou com um cuidado extremo a sua nova almofada de penas, disfarçada com uma fronha velha e descosida, feita para despistar olheiros. Ninguém na rua tinha uma e muito menos grande e fofa como a dela. Fora oferecida pelas voluntárias do canil, que lhe conheciam o frio na espinha e soube imediatamente qual o destino a dar-lhe.

Oh meu Deus, o canil! Com a novidade do carrinho das compras e a alegria das arrumações, esquecera-se por completo do canil.


Com um passo muito mais ligeiro que o do passado e aliviada do peso, graças à nova aquisição, chegou lá num instante.

Então Jú, a Musa já tinha perguntado por ti e está para ali numa inquietação que ninguém a cala. Contou-lhes rapidamente da novidade e apressou-se para junto dela, que nessa altura e depois de lhe sentir a voz no portão, gania tão alto que era impossível não ficar rouca. A loucura da saudade era tanta, que parecia uma tonta aos saltos à volta dela, ladrando sem parar e sem ligar às dores nas pernas doentes e fracas.


Fora das primeiras, a inscrever-se como família de acolhimento daquele canil. A Musa já era a “sua” terceira cadela. Todas as manhãs, depois da sopa dos pobres, ia buscá-la para passarem o dia juntas. Amigas do coração, passeavam em Lisboa pelos jardins, onde havia crianças que lhe ofereciam festas e as bolachas do lanche, descansavam à sombra junto ao rio e almoçavam sossegadas nas traseiras do refeitório do ministério. A deficiência das patas traseiras, resultado de um atropelamento, a partir de agora não iria atrapalhar mais o andar da Musa. Jú colocou-a no carrinho do supermercado, mesmo em cima da sua preciosa almofada e ficaram com a cara ao mesmo nível, para poderem conversar, sorrir e beijar. Assim, Musa ficou a salvo das arrogantes biqueiras, calçadas nos pés dos animais humanos, que a enxotavam do seu caminho sempre apressado.


Entre lambidelas, contou-lhe as novidades da gata amarela e dos seis bebés, do veterinário que se tinha esquecido de dar a vacina ao Jonas, da entrada de uma nova voluntária, que ali havia chegado com cobertores e mantas novas para o Inverno. Todos os dias lhe dizia, que tinha muita pena de não poder ser dela para sempre, para poderem dormir juntas todas as noites. Não se importava de ficar na rua nem ao frio, afinal a Jú não dizia que se aquecia com o termos do café? E deitava-lhe um olhar comprido.

Já sabes que também tenho pena, e estar contigo todo o dia é quase um favor que me fazem em atenção a outros tempos. E falava-lhe da casa onde já vivera, do marido que desaparecera, dos filhos e das saudades que sentia, mas que preferia arrumar no fundo dos seus velhos sacos. Dos imprevistos, das más surpresas, do destino e da sorte e do amanhã que não lhe sorriu. Do quão invisível era a sua passagem pelas ruas, aos olhos dos outros.

Voltavam ao canil às cinco, depois de lancharem os produtos fora de prazo.

Foi bom o vosso dia? Por onde andaram hoje? E que tal a tua almofada nova, Jú?

Entre lágrimas secas, olhares à Carlos Tê, tristes e sós, narizes húmidos e orelhas baixas, ainda conseguiu responder, a Musa adorou-a!


A Musa?



foto de bruno espadana


apoio aos animais de rua, aqui.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

feed-back

Uma mulher comprometida, mas destacada em trabalho em Paris, recebe uma carta do seu noivo João, que ficara na Argentina e que dizia o seguinte:

Querida Marta,

Já não posso continuar com esta relação.

A distância que nos separa é demasiado grande. Devo admitir que te fui infiel dez vezes, desde que te foste e creio que nem tu nem eu merecemos isto. Sinto muito.

Por favor devolve-me a foto que te enviei.

Com amor.

João

A rapariga muito ferida, mas de amor próprio sempre atento, pediu a todas as suas colegas de trabalho que lhe dessem fotos dos seus noivos, irmãos, amigos, primos, vizinhos.

Juntamente com a foto do João, incluiu dentro do envelope, todas as fotografias que tinha recolhido das colegas e enviou-lhas.

Além das fotos, juntou um breve recado que dizia :

João perdoa-me, mas não consigo lembrar-me de quem tu és; talvez o último? Por favor procura a tua foto no envelope e devolve-me as restantes.

Com amor.

Marta










Texto que me foi enviado por mail.

Fotos de amigos meus, só o João é que não conheço.

p.s. meninas, limpem as dedadas do ecrã antes de sairem, por favor.
p.s.1 meninos, não vale cuspir, é que depois seca e custa-me muito a limpar.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

conversa da treta


Cenário: esplanada com grupo de amigos, alguns conhecidos e outros quase estranhos também. Pronto, éramos muitos.

Desagrada-me ouvir conversas em que são dadas opiniões levianamente, onde se fazem comentários gratuitos, tudo baseado em conjecturas sobre a vida de alguém. Convive-se com uma pessoa, duas ou três vezes e já se lhe tira a pinta e a radiografia completa. Fico perplexa a pensar, como raio esta gente que mal conhece a vida da pessoa em causa, chega a tantas conclusões e óbvias certezas. E mais, até sabem o que o(a) outro(a) deve fazer e não fazer. Para onde ir e onde não ir. Com quem e até sem 'quem' algum.

É um mistério.


Sou uma pessoa crítica, com opinião formada sobre muita coisa e cada vez com mais dúvidas acerca de outras tantas, observadora e muitíssimo atenta por natureza. Várias vezes sou dura e cirúrgica e tenho perfeita consciência disso, é voluntário. Ah e não me esqueço de quase nada. Grande desvantagem para os outros.

Também mudo de opinião se for caso disso, na boa. Aliás só não muda de opinião quem não a tem. E felizmente já o fiz várias vezes. Para meu benefício e dos outros.

Mas quero estar livre de atirar pedras à desgraça das pessoas e falar de alto de vidas que não vivo e de que nem sequer conheço todas as razões, ou de assuntos que não domino e muito menos quando mal sei do que se trata. Quero ter sempre esse discernimento, porque não tenho quaisquer pretensões de perfeição. Livra! ‘Ganda seca, quem tem a mania que sabe tudo. Já sei muita coisa, mas felizmente nem sei a missa a metade.

Não gosto de forcas, de linchamentos, de fogueiras, de julgamentos sem testemunhas, de enterros, de coveiros em part-time, nem de culpas. Quem nunca viveu já situações, por muito insignificantes que fossem e que não teve outro remédio senão moldar-se, adaptar-se, esperar que as coisas se resolvessem, engolir e calar, que se acuse.

Seria a primeira pessoa perfeita que eu ia conhecer. E como diz o povo ‘falar é fácil’, temos sempre muitas respostas para as vidas dos outros e sabemos sempre qual a melhor forma de convalescer e aperfeiçoar as suas vivências.


Talvez um rewind na nossa vida nos fizesse calar antes de abrirmos a boca e falar sem pensar.

E é uma ideia minha ou as acusações e sugestões vêm sempre do lado de quem mais devia estar calado? Ou de pessoas que passam a vida a bater com a cabeça nas paredes?

As mesmas cabeças, que com a mesma facilidade acenam que sim, como abanam que não, ou fazem assim-assim.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

muitas saudades tuas


Eu sou Outono que começou ontem. Sou frio e vento e folhas encarnadas pelo chão.
Castanhos, ocres, cinzentos, laranjas, ferrugens, matizados e mesclados. Verde seco.
Cheiro orvalhado, terra molhada, brisa fresca, chuva fina.
Sol alto mas ainda cálido, que quando cruza o equador celeste, no hemisfério norte se chama equinócio.
Às vezes envergonhado em céus azuis.
Braços agasalhados, lãs para fora, roupa quente, arrepios de frio.
Cinema, exposições, espectáculos, castanhas assadas, chás quentes, fondues de chocolate, compotas e geleias, receitas caseiras de fornos em brasa, para tardes frias de lanches plenos, vinho tinto ao jantar. E caipirinhas também, porque não?
Passeios de Inverno, serões à lareira, projectos do tempo frio, fotografias na praia.
Renovação de ciclos, recomeços, reciclagens, reviravoltas. Reaparecimentos revigorantes. Reencontros de príncipes e de princesas. Contos de fadas.
Cabelo ao vento e cara fria. Sentimentos meus. Nostalgia sem doença.
Gosto neste Outono da frescura invernosa que se inicia, da natureza quase primaveril e do calor que ainda veraneia.
Só não quero o curto dos dias.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

entardecer juntos - #4


Rosinha sempre acordou cedo, antes mesmo do marido quando ele ainda trabalhava. gostava de deixar tudo pronto para o pequeno-almoço dele e das filhas, que iam para a escola e depois para o liceu e faculdade. Hoje em dia, já não era preciso, mas habituara-se assim e hábitos antigos transformam-se em feitio. Colam-se a nós.
A camisa de dormir de algodão branco e florzinhas cor-de-rosa, chegava-lhe até aos pés enrugados e magros, preenchidos de salientes veias azuis.
Que a roupa lhe iria ficar larga com o passar dos anos, não era razão para grande espanto. Agora, quando começou a notar que essa mesma roupa também lhe ficava comprida, é que se desanimou. Rosinha encolhera. Há já muitos anos que começara a notar e não havia nada a fazer. Agora até dava jeito quando saía da cama, porque devido ao frio da manhã a camisa de dormir cobria-a toda até ao chão e muitas vezes tacteava as pantufas fofas com a ponta dos dedos, pois nem as via.
E ria-se, com a ligeireza com que as encontrava e enfiava nelas os pés, ainda há momentos aquecidos entre o marido.

Esticou devagar a mão para alcançar o roupão de lã, vestiu-o com o ritual demorado de todos os dias, das mesmas dores nas articulações. Primeiro um braço, depois descansou e só depois o outro. Levantou-se e o marido esticou-se na cama. Eram as dores na bacia que davam cabo das noites dele. Já dormia muito pouco e ela sabia-o. A custo, apertou muito ao de leve o cinto do roupão e doeram-lhes imediatamente os nós dos dedos deformados.
Pegou na garrafa de vidro com a água da noite, olhou para ele com um carinho sempre maior que o do dia anterior, enquanto o via ocupar o lugar da cama, que ela acabava de deixar vago. Sorriu ao ver dentadura dele dentro do copo e lembrou-se que quando ele a começou a usar, não se importou nada e até fazia brincadeiras tolas para os netos.
Mas Rosinha, não. Nem pensar. Ainda era vaidosa e nem queria ouvir falar de dentes a boiar dentro de copos de água e a rirem-se para ela durante toda a noite.
Já vais, Rosinha? Vou e deixa-te estar sossegado. Tenho de ir ferver o nosso leite e já te venho chamar. Deslizou silenciosa e encostou a porta atrás de si, para não o incomodar.

Colocou o fervedor com o leite ao lume, afastou as cortinas de bordado inglês, que costurou noutros tempos, deixou entrar a luz da manhã e fez festinhas no bico do canário branco, que cantou mal a sentiu. Então meu menino, é a mãe que já chegou. Tem fominha não é? Muita fominha, o meu menino. E ele cantava-lhe que sim, que tinha fominha.
As filhas já lhe tinham colocado a louça que mais usava, nos armários de baixo e assim tornava-se mais fácil lidar com aquelas peças frágeis, que lhe começavam a escorregar das mãos.
Por pouco, o leite não fervia outra vez para fora, lembrando-lhe que tinha de ficar mais atenta ou então aceitar o tal do micro-ondas que insistiam em oferecer-lhe.
Depois de posta a mesa com a toalha branca de ponto cruz, guardanapos de pano enfiados nas argolas de osso, tigelas largas para as sopinhas de leite, pão partido aos pedaços e os frasquinhos de comprimidos alinhados em frente de cada um, ia chamar o marido.

Fazia-lhe festas no pouco cabelo, ajeitava-lhe a dobra do lençol e ele fingia que acordava.
Já está tudo pronto Rosinha? Olha que tu me saíste uma noiva despachada e o meu beijinho, onde está ele?
Deixa-te lá de brincadeiras, que já sabes que não me posso dobrar. Riam-se destas tolices de jovens apaixonados e ajudava a levantá-lo.
Já se tornava tarefa difícil e desde a segunda operação à bacia que a prótese o incomodava cada vez mais. Queixava-se pouco, pois não queria preocupá-la, mas só dormia umas quatro horas por noite. Não tinha posição de estar e esticava-se na cama, mal ela saia de manhã. A melhor coisa que lhe podia acontecer naquela cama, era quando ela se levantava para lhe dar espaço às dores. Mas nunca lhe dissera.

Rosinha vestia-lhe o roupão de xadrez, calçava-lhe as pantufas, massajava-lhe as mãos doridas e colocava-lhe os óculos.
Ajudava-o na ida para a casa-de-banho. Lavava-lhe a placa, fazia-lhe a barba rala, colocava-lhe o clister diário, ajudava-o a sentar-se na sanita e no fim limpava-o com toalhetes frescos e perfumados com água de rosas. E lá vinha a piadinha do rabinho lavado com a água das ditas. A cena terminava sempre em troça.
Pronto, agora que já estás bonito, vamos comer. Na cozinha, era ele que servia o leite, juntava os pedacinhos de pão nas tigelas largas e envolvia tudo com o açúcar amarelo. Depois das migalhas sacudidas para a gaiola do canário, só faltava vestirem-se e sair, porque os banhos tomavam-se só lá pelas seis da tarde, quando a porteira os vinha ajudar.

Fora Rosinha, que ao longo de todos estes anos lhe escolhera sempre a roupa.
Tu vê lá o que é que escolhes, porque depois as velhotas do jardim não me largam. Olha, e tu veste aquele vestido azul que a nossa neta Maria te deu nos anos.
Pelo menos quarenta minutos, demoravam eles naquele ritual do escolhe, veste, calça, penteia, perfuma, brinca e ri. Chegava entretanto a ajuda domiciliária da junta de freguesia, que lhes vinha arrumar o quarto, dar um jeito à casa e à roupa e deixar o almoço e a ceia preparados. Bom dia, meninos! ‘Tá uma linda manhã para passear, aproveitem o sol.
Atendiam o telemóvel às filhas, respondiam a todas as perguntas com paciência, ouviam com um sorriso displicente as várias recomendações e mandavam beijinhos aos netos, cheios de vontade de os ver no domingo, no almoço da família.
Depois de desligar, riam-se e gozavam entre si com as preocupações tolas das filhas com eles, pegavam nos casacos, davam a mão e …

Anda Rosinha, vamos mas é namorar e diz-me lá que flor do jardim queres hoje tu, minha mais bela Flor deste meu canteiro?

domingo, 21 de setembro de 2008

sábado, 20 de setembro de 2008

[8] ´tou no ir...de fim de semana



Vizinhança, sou eu que sou velha ou já ninguém se lembra desta canção?
Desculpem lá, estão a rir-se do quê? Esta música ganhava sempre quando eu brincava aos festivais da canção!
Vá lá, mãozinhas no ar e tudo a cantar que eu até lhes encontrei a letra. E nada de se fazerem de esquisitos que eu bem sei que todos conhecem a Jeanette e o "Porque te vas"!
Eu no fim do dia, vou ver ao sitemeter, quem é que ficou mais tempo a cantar, hahahahahah ai vou, vou! Eu depois anuncio o vencedor.
Bom fim-de-semana. :)

Hoy en mi ventana brilla el sol y el corazón,
se pone triste contemplando la ciudad

porque te vas.
Como cada noche desperté pensando en tí
y en mi reloj todas las horas vi pasar
porque te vas.
Todas las promesas de mi amor se irán contigo.
Me olvidarás, me olvidarás.
Junto a la estación lloraré igual que un niño
porque te vas, porque te vas,
porque te vas, porque te vaaaas. (este aaaaas é o melhor da música, por isso esforcem-se bem aqui)

Bajo la penumbra de un farol se dormirán
todas las cosas que quedaron por decir,
se dormirán.

Junto a las manillas de un reloj, despertarán
todas las horas que quedaron por vivir,
esperarán.
Todas las promesas de mi amor se irán contigo.
Me olvidarás, me olvidarás.
Junto a la estación lloraré igual que un niño
porque te vas, porque te vas,
porque te vas, porque te vaaaas.
Todas las promesas de mi amor se irán contigo.
Me olvidarás, me olvidarás.
Junto a la estación lloraré igual que un niño
porque te vas, porque te vas,
porque te vas, porque te vaaaaaas.


Fada, ouvi dizer que tiveste uma semana lixada, então descontrai agora.
Pitanga, agora é para ouvires e cantares, depois lês na segunda-feira, ok?
Lena, onde é que te meteste oh loura?

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

a larva e a borboleta - #3


O trajecto diário é sempre infinito. Os solavancos ritmados do autocarro, fazem cair o tipo malcheiroso para cima de si todos os dias.
Tem frio. As mangas do velho sobretudo já não descem até aos pulsos. Mas continua a puxá-las até esgaçarem. Quando romperem logo se verá. Na paragem descem sempre os mesmos, mas cada um se enfia numa esquina diferente. A dela é imunda. Cheira a bêbados, a vómitos, a podre, a fumo de fábrica logo de madrugada.
O porco do patrão já p’ra lá anda a roçar com a barriga nos armários e a esfregar os toucinhos volumosos no balcão de pedra mármore. Para a esquerda e para a direita, para a esquerda e para a direita. Sempre com o mesmo trapo gasto e desfiado, com perfume a bedum.
Então rapariga, já ai estás? Começa a cortar carcaças, que não tarda nada ‘tá aí o pessoal da fábrica. Vá lá, avia-te mulher, que não te pago para pores essa cara!
Começa a dividir ao meio, dezenas de carcaças moles e enche-as de margarina, mortadela seca e de torresmos duros. Acarta com botijas de cerveja, que a malta ali não é de mariquices e não bebe galões.
O cheiro a sovacos mal lavados e a pele masculina carregada, avisa-a que o inferno já deu ordem para atiçar o fogo aos caldeirões de ferro preto.
Chegam aos grupos e abraçam-se uns aos outros dando palmadões nos costados. São horas de alarvidades, de gargalhadas roucas com cheiro a tabaco sem filtro, de mãos com unhas sujas que aparecem bem perto do corpo dela, de corpos suados e usados à pressa, pelas desgraçadas da esquina.
Torna-se surda perante aquelas conversas de putas, futebol, salários de miséria e de lutas sindicais.
A gordura é toda a mesma. A deles e a das panelas que tem a feder ao lume para o almoço. Já não as distingue.
Anda lá, oh caraças? ‘Tás agarrada ao tacho a fazer o quê? Tu queres ver que ainda desandas daqui para fora hoje!
Depois do apito da fábrica, limpa todo o esterco deixado pelos homens. É difícil e o tampo das mesas ainda de madeira, não lhe facilita a vida. A porcaria entranha-se nas frestas, apodrece por ali e serve de alimento durante semanas, aos animais que se seguem: baratinhas minúsculas e luzidias, mosquitagem diversa, peixinhos de prata e outros seres rastejantes ainda sem nome.
Com o fim da tarde, chegam também as mulheres da vida. São cada vez mais novas. Ao contrário dos homens da fábrica, sentam-se sozinhas ou duas a duas. Sem barulho, sem festejos e cumprimentos, bebem pouco e comem menos. Falam baixo e observam quase nada.
Tratam-na pelo nome, dizem por favor e obrigada, mostram-lhe fotografias dos filhos que pouco vêem. Não choram, não se queixam, não se lamentam.
No fundo são como ela. Vivem com o que têm.

De novo o toque da fábrica dá sinal de aviso para o início do expediente delas. Saem silenciosas, devagar e já de cigarro na boca, retocada há minutos de batom encarnado vivo. Nunca deixam qualquer sujidade ou cheiro atrás de si.
Já se gastou há muito.

O tasco fecha também. E depois sai ela.
É agora, que literalmente desperta e abre os olhos.
Lava-se na casa-de-banho pública, solta e escova o cabelo, perfuma-se com a amostra de cheiro que veio no gel de banho, troca a bata imunda por uns ténis, jeans e t-shirt limpos e enfia os óculos escuros que alguém já não quis porque passaram de moda.
Traz o jantar da cozinha e come-o sempre no jardim em frente ao liceu, onde lê todos os jornais gratuitos que estavam a dar de madrugada, na paragem da camioneta.
Sentado ao seu lado no banco do jardim, está o Pedro de portátil ao colo e que dali a uma hora, vai ter as aulas da noite. Ela navega pela net com tanto à vontade como se o pc fosse seu. E é. Naquela horita o Pedro entrega-lho, enquanto faz backside, frontside e grabs no skate. Ouve os seus sucessos no youtube, vê quais os museus que não se pagam ao domingo de manhã, toma nota das exposições nas galerias de arte, dos concertos ao ar livre e das feiras de tasquinhas. E envia mails para si própria.
Eu hoje trouxe-te uma surpresa; fotocópias dos contos do Trindade Coelho e poesias da Florbela. Sorri de felicidade.
Até amanhã, Pedro.
Ainda passeia de braço dado com o velho e o cão e ouve-lhe as histórias, os sonhos e os suspiros de cansaço da idade. Recebe, beijos, festas e lambidelas de gratidão.

E segue para o pequeno centro comercial, onde o segurança que é filho de uma das mulheres da esquina, a conhece da taberna. Deixa-a entrar no cinema todas as noites e a meio do filme oferece-lhe pipocas e coca-cola, com os cumprimentos dos empregados do bar. Amanhã não podes faltar que é um dos românticos.
Claro que não!
Agradece os posters dos actores para colar na parede do quarto e a gerente da Zara consegue passar-lhe duas peças de roupa com imperceptíveis defeitos. Ainda salva a tempo do contentor do centro comercial uma caixa de sapatos, que vem mesmo a calhar para guardar os colares de conchas que encontra na praia aos sábados.
Apanha boleia dos homens do camião do lixo e chega ao canto onde vive, sempre feliz.
Deita-se a sorrir, pega na Florbela que lhe deu o Pedro e conversa com ela.
Segue acordada o resto da noite.
Afinal, é durante o dia que prefere dormir.



quinta-feira, 18 de setembro de 2008

confeitaria ao domicílio - #2


Ele coitado, bem se encolhia lá no fundo do seu canto da cama, bem chegadinho à mesa-de-cabeceira, correndo o risco de lhe entrar a esquina pelo olho adentro.

Era sempre o primeiro a enfiar-se nos lençóis de cetim brilhante, enquanto ela se dirigia para a casa de banho no ritual nocturno dos seus hábitos higiénicos. O desgraçado do Alfredo seguia-a com pézinhos de lã, muito à cautela e no mais absoluto silêncio, escondia-se dentro deles. Não fora o chilrear prolongado da gaita da cama de bilros de pau-santo, que a madrinha lhes tinha oferecido, Branquinha nunca daria por ele.

Alfredo, filho? És tu? Eu já vou meu anjo. Não adormeças.

Anjo? Como é que aquela coisa enorme, possuída pela lascívia do diabo, podia falar em anjos? Anjo era a Mariazinha, a alminha pura e voadora que ainda chorava por ele enquanto aviava fitas de franzir, lá na retrosaria da praceta. A única rapariga da vila que não se importou que ele tivesse aquele arzinho enfezado por causa da diabetes.

Desgraçado do Alfredo, era sempre apanhado naquela parte dos guinchos do pau-santo da madrinha. Raios partissem a cama, os bilros, os guinchos, os lençóis de cetim e as obrigações conjugais.

Sim querida, sou eu. Não tenhas pressa.

E benzia-se.

Nunca deveria ter ido nas cantigas da mãe. O que é vais tu fazer no meio de botões, fitas de nastro e elástico para ceroulas? Tem mas é tino nessa cabeça e olha p’rá Branquinha da confeitaria, que não tira os olhos de ti. Tão jeitosa a rapariga, prolífera, alimentada, excelente doceira. E o pai dela tem mais pastelarias, não é só aquela. Eles têm encomendas de todo o país. Ele é trouxas-de-ovos, papos de anjo, brigadeiros, travesseiros, queques de frutos secos, mil-folhas, queijadinhas e até bombocas! Ali sim, tens futuro e uma prole de jeito. Uma prole, Alfredo!

Oh mãe, mas a minha diabetes com aqueles doces todos? Oh filho não comes, mas deixas comer.

E lá se rendeu ele às aproximações salivantes da Branquinha. E agora estava ali, no castigo de todas as noites. Castigo merecido, diga-se. Quem é que o mandou deixar sofrer a alma pura e cândida da Mariazinha?

O cheiro a perfume quente, era o primeiro aviso.

Lá vinha ela, à média luz, envolta em rendas e bordados castanhos escuros, fitas encarnadas e florinhas bordadas, chinelinha de quarto com pom-pom na ponta, de unha enorme e saliente colada ao dedo indicador, que o chamava de Fred. Fredizinhooooo, Fredizinhooooo, cu-cu, chegou a Bomboca para o seu Queque Gigante!

Oh minha Nossa Senhora. Hoje era a noite do Queque Gigante. Outra vez!

Oh filha, mas o Queque Gigante já foi na semana passada! Não preferes o jogo do Repasto da Aldeia ou aquele do Cabaz do Natal?

Não. Ela não preferia. O Queque Gigante era o seu jogo preferido. E era ela a Bomboca que mandava.

E pronto, lá se atirava para cima dele, não sem antes colocar em cima da cama o saco dos acessórios da doçaria afrodisíaca.

Pobre Alfredo, a Bomboca erótica e obscena, em menos de um instante tornava-o no queque mais peganhento e lustroso da vila.

Barrado com chocolate-creme de spray, qual cobertura de bolo de aniversário, enfeitado aqui e ali com pedacinhos de nozes, salpicado de confetis como os suspiros de padaria, minúsculos e coloridos e preenchido por uma espiral de caramelo Alsa, era envolvido, barrado e revirado naquelas mãos sapudas e enfeitiçadas desejosas do clímax final.

Depois do esmerado deco adaptado da melhor forma ao corpo do Alfredo, a Bomboca fogosa, passava ao limar de uma ou outra saliência angulosa. Nunca descurava dos pormenores.

Era o caramelo Alsa que lhe tinha escorregado para dentro do ouvido esquerdo e colado ao cabelo, o creme de chocolate que já começava a desfazer-se entre os dedos dos pés e se metia entre as unhas do dedo gordo, as pobres nozes, que aflitas com todo aquele horror, tentavam fugir para dentro das cascas partidas, ainda espalhadas pelo chão, os confetis coloridos começavam a desbotar no creme, tornando-o malhado de cores aguadas e fracas.

Bomboca precisava de se apressar para que a sua sobremesa não desfalecesse. Nada que uns borrifos de gelatina líquida não resolvessem. E voilá, só faltava abraçá-lo em papel-seda, de pregas finas.

Alfredo cada vez mais arruinado do destino que ele próprio escolhera, lembrava-se das palavras da mãe, oh filho não comes, mas deixas comer e aguardava nervoso e açucarado pelo final do banquete, pelo ponto alto do fetiche da Bomboca, pelo seu tão ansiado clímax.

Quando ela, com um sorriso de orelha a orelha, manuseava a cabeleira farta num gesto travesso e colocava com toda a firmeza e perícia de pasteleira-mestre que sempre fora, a ginja encarnada e gorda, na sua ponta.


Do Queque Gigante.