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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

parasimpattias #1


Exercício: Um velho está em pé numa paragem de autocarro, com uma bengala na mão e um folheto na outra. O dia é frio, chuvoso e triste.

(Narrador na pessoa)

Há uns dias que reparo nele. Olhos entusiasmados - que desejo sinceramente, já tenham tido um destino feminino de rosto meigo. Hoje procuram fixar-se num ponto, num sentido, em algo que não surge. E pela tristeza que pariu este dia, desconfio que não surgirá.
Vem lá do fundo da minha rua, alheio aos primeiros chuviscos, num passo leve mas pesado, como se sentisse profundo o resto do tempo que ainda lhe falta existir. Todos os dias traz a bengala consigo - pega de marfim, cabeça-de-leão - mas não se apoia nela; afasta os empecilhos do caminho com o extremo pontiagudo de aço frio, desviando com a destreza de um profissional de hóquei, todos os estorvos e obstáculos que o impeçam de chegar à baliza: aquela vulgar paragem do autocarro. Igual a tantas outras.
Eu, do outro lado do passeio, sentada na esplanada observo-o no cumprimento de um bom-dia a todos, de sorriso na cara.
Tenho-o como educado, pois repete teimosamente o ritual daquela saudação - em desuso - e parece não se importar com a ausência de resposta. Nem o cão vadio lhe sacode a cauda; só pensa em dormir o pobre animal, exausto da procura da noite: vasculhar
no lixo dos outros, o luxo de uma refeição decente.
O meu velho, aconchega a ruça flanela axadrezada ao pescoço sulcado de passado e esfrega as mãos, termometrando o frio que já vem chegando mais áspero, nestes primeiros bateres de outono. Leva a mão ao bolso do casaco e ...
E depois vem aquela parte que me intriga, que me faz esperar pela sua chegada estes dias, que me espevita a curiosidade; que quase me envergonha, a mim mais a esta minha observância invasiva. Estranho. Não sou nada de meter o nariz na vida dos outros. Acho que simplesmente só gosto de pessoas, de reparar no que os outros não vêem, de imaginar o que há para além do óbvio. Do pormenor. Até a palavra pormenor é bonita: p-o-r-m-e-n-o-r.
Retira o folheto do fundo do forro. A folha do costume; gasta, vincada nas dobras brancas, já sem tinta. Afina o aparelho na orelha. Lê e relê aquele papel. Vira-o e revira-o. Cheira, afaga, sente-o junto do ouvido.
Não distingo nem letras, nem figuras, muito menos o assunto, mas é de certeza o mesmo folheto que lhe tem despertado a atenção todas as manhãs. Também não será hoje que descubro do que se trata, mas aquele seu aproximar da folha do ouvido para lhe saber o som, mexeu comigo.
É então que decido presumir e ponho-me a fantasiar!
Trata-se de uma pauta de música. Está resolvido. Com o seu peculiar traçado, desenhado com bailadores símbolos pretos,
de perninhas, rabinhos e cabecinhas ágeis pintadas nos extremos, que executando passos de dança, cantam uma toada alegre. Uma marcha musical com mais de cento e cinquenta anos. E eis que o meu velho ergue a bengala como uma batuta, iniciando a direcção de uma orquestra obtida nos sons da manhã.
Coloca-se na frente da paragem de autocarro e vai por ali afora, de bastão com cabo de marfim no ar, regendo a parada na execução da sua peça musical. Persegue-o de imediato o rafeiro, animado com aquele sopro de vida, soltando latidos num ritmo cadenciado, e logo dobra a esquina juntando-se a eles, um jovem de iPod, que desperto do marasmo habitual, marca o compasso num puxa e escorrega, com o auxílio dos jeans descaídos, atrás de si surge a secretária de salto agulha, batucando a biqueira sensual no empedrado e abanando os ombros deliciada, depois vem de lá a cabeleireira do salão Peruca Jovem, tesourando o ar com um tac-tac alegre e sonorizado, aparece a mulher da limpeza do armazém dos congelados, empunhando a esfregona e dedilhando nas suas cordas brancas de franjas húmidas, notas de pura sintonia, e os carros apitam, e a menina da farda cinzenta que vai para o colégio dança, as árvores ávidas de pássaros calam-se e escutam-no e até eu, embasbacada com aquela marcha de comemoração, tilinto a colher na chávena do meu café, provocando acústica no copo de água e rumores na lona do guarda-sol, que
ainda há instantes, me protegia do ruído amotinado da rua. Do silêncio ensurdecedor da vida.

Será que é música, o que se passa na cabeça deste velho, Si?