terça-feira, 31 de março de 2009

palitar

foto toothpicks cube

É um esmiuçar a fundo, um esgravatar com rigor na busca de pedaços moribundos, que quando se alcançam por fim, atinge-se uma sensação de vitória, de missão cumprida. Alívio.
Perfeitamente compreensível este estado de consolação, que se obtém com o prazer do palitar e não, nada tem de repulsivo, pois a procura exaustiva de defuntos fragmentos em cavidades íntimas, mais não é, que uma tentativa puramente cultural de aproximação a ancestrais rituais indígenas, isto é, o ensaio de tornar a dar vida ao que já se foi.
A fracção de comida putrefacta presa entre dois molares cariados, emite uma mensagem de angústia claustrofóbica, e é então que o proprietário da cavidade bocal, perante a agonia da prisão e o desejo de liberdade daqueles restos mortais de bife, desespera.
A sua coerência é rapidamente toldada e a ele qualquer frágil lima de unhas, encerra em si a capacidade de serrar o ferro das barras da cela. Entrega-se ao momento numa dedicação única e torna-se um expert no manejo do simplório palito de madeira, acreditando ser capaz de um eficaz e complexo tratamento de higienização, desvitalização e quiçá ortodontia, à laia de pé de cabra.

Ahhhhh, rumoreja satisfeito.
O protagonista deste espectáculo descai agora da cadeira, encosta-se em jeito de sesta domingueira e de palito ao canto da boca que dança mais calmo, para baixo e para cima, arrota fundo e finalmente realizado.

22 comentários:

salvoconduto disse...

E aí é caso para dizer: arrota pelintra, faz-te lorde!

pedro oliveira disse...

que dizer da malta que gosta de fazer malabarismos com o palito à mesa?.....

Lucia Luz disse...

O encantador é que mesmo o protagonista desse espetáculo terrível pode transmutar-se arte e se tornar belo.
Beijinhos

BlueVelvet disse...

A originalidade e criatividade deste texto não me permitem comentá-lo usando a brejeirice.
Dada a sua crueza e realismo diria que se fosse um filme, seria o Seven, se fosse uma pintura seria surrealista.
Em todo o caso, e só para aligeirar, mais uma vez me regozijo por não comer carne.
Parabéns, vizinha

Gi disse...

Eu agora desde que fui apresentada ao escovilhão já não meto palitos, melhéri!
O escovilhão até parece um lápis e gajos de lápis na boca dão um outro ar da sua graça. ;)

Pitanga Doce disse...

Ó cum carago que esmiuçaste bem o ato de palitar. Não é das coisas mais bonitas de se ver e mesmo quando o "palitador" põe a mão a querer tapar a boca, o efeito não é dos melhores. É por isso que já se veem pessoas nos banheiros dos restaurantes ou dos shoppings com o fio dental na mão.hehehe

PS: de fato um pedacinho de carne é um martírio, mas se for um fiapo de bacalhau? É de sair correndo.

bom dia Patti

claudia disse...

E eu que acabei agora de almoçar...bahhhh !!!...mas reconheço o teu mérito em descrever " tal qual" o verbo palitar!

anniehall disse...

:) Assim descrito até tem graça .

CPrice disse...

A questão aqui é como é que uma "cousa" tão feia e atrevo-me a completar com "degradante" do género humano pode resultar num texto assim.
Essa é que é essa .. ! ;)

Luísa A. disse...

Veja, Patti, o que a civilização e o chamado «bom gosto» andam a fazer de nós. Se esse homem primitivo, no seu ataque directo a um inimigo mortalmente incómodo, não é, na verdade, muitíssimo mais feliz? ;-D

Si disse...

Ai, credo!
Até parece que estou a ver daqui a boca escancarada, com os molares cariados e o bife ressuscitado, qual zombie, a tentar sair pela boca fora!
Livra, deixa-me sair daqui, ou ainda apanho com algum putrefacto em voo disparado!!!!

paulofski disse...

E como é revitalizante o manejo da fruta seca depois de um bom repasto de bacalhau!

Justine disse...

Excelente argumento para um filme de terror:))

R.Rosmaninho disse...

Assim descrito, o acto até se torna menos repulsivo.Faz-me lembrar Eça de Queirós. Muito bom!

f@ disse...

Esta escultura da imagem faz esquecer todo o resto ... da limpeza claro... quanto ao texto, criativo e realista até fazer perder o apetite...

beijinhos

LeniB disse...

E quando o palito se parte entre a dentadura? Ah pois!!!

maria inês disse...

Deixei um recado para ti e um beijo muito grande

Filoxera disse...

Boa descrição. Dois blogues seguidos que leio onde se refere a sensação de dever cumprido; curioso ;-)
Beijos.

Anónimo disse...

Só venho cumprimentá-la, PresidentA. Amanhã faço os comentários. Desculpe aquela irreverência da Martinha, mas vai peceber a razão dela ser assim. Outra cutura...

Anónimo disse...

Já aderi às novas tecnologias do escovilhão. Os meus dentes não aceitam palitos.

Bacouca disse...

E agora que tudo anda meio falsificado, se se parte a pontinha do palito no buraco como é que ele faz? Não me diga que vai lá com o dente do garfo, pois a unha mindinha picuda está metida no pavilhão auricular!

ana v. disse...

E viva o primitivismo! lol
Um beijo, menina Patti, e boa Páscoa.