segunda-feira, 15 de junho de 2009

missão: personagens II


Oh Célia, não há de frango, queres de atum? Incomodou-me uma voz varonil a berrar.
'Na gostas? Olhe então são só duas bejecas fresquinhas, fáxavor.
Quero desde já deixar bem claro, que eu não estava em missão de descoberta de personagens, nem nada que se parecesse. Encontrava-me sim, na esplanada da minha praia num fim de tarde aprazível lendo o meu admirável Tchékhov e só desejava mesmo, sossego e pouca distracção.
Pois, tenho destes desvarios, gosto de ler os russos no verão. Deve ser a melancolia do frio que tanto aprecio. Ninguém é perfeito. Adiante.
Encho-me de vergonha e aceito a punição, mas nem o puro realismo contido nos contos de um génio como Tchékhov, fez com que me abstraísse daquele, Oh Célia, vociferado com poder másculo.
Do gelo de Moscovo, incisivo e letal, salto de imediato para um não menos fatal calor ibérico, mais propriamente na Caparica, que queima como tições cozinhados em labaredas. O contraste foi brusco, mas não tive outro remédio senão adaptar-me rapidamente. Precisava de conhecer a Célia.
Pousei o meu clássico na sombra e enquanto lhe fazia festas, prometendo que a ele voltaria mal tivesse oportunidade, escorreguei ligeiramente pela cadeira, baixei os óculos escuros e coloquei-me em posição de vigilância.
Como que desmaiada de barriga para baixo, à sombra de um multicolor guarda-sol que exibia gratuitamente as letras garrafais cor-de-laranja, Trifene 200, encontrava-se a Célia. Sem demora, juntei-lhe um segundo nome próprio para ficar mais compostinha: Gorete. Célia Gorete e por favor pronunciem com acento no primeiro o: Gó-re-te!
A tatuagem arrogante de caracteres celtas, ou hindus, ou cirílicos, ou chineses ou lá o que raio era aquilo, desenhada primeiramente ao nível dos rins, já vira melhores dias. Também as leis da física, com o correr dos anos haviam sido fatais para Célia Gorete. Os refegos cilíndricos, assim como as pregas nascidas pós-tatuagem devido aos abusos de uma nutrição irresponsável, provocaram dilatações no corpinho, fazendo espalhar o desenho que escorregava agora ao longo do pneu sobejado.
Perante tal visão, encolhi os meus abdominais e prometi a mim mesma, talvez pela décima quarta vez, que era desta que largaria a droga; os chocolates, diga-se.
Entretanto, o par de Célia Gorete, um cepo robusto esculpido numa peça única, bronzeado o ano inteiro e coberto de pêlos género matagal intenso, a quem baptizei sem hesitações de Leandro, já se dirigia direitinho ao guarda-sol, onde a sua sereia o aguardava necessitada de beber.
Pôs-se a jeito para o repasto, largou a Nova Gente, sacudiu a areia da toalha e finalmente expôs o figurino para satisfação de gente indiscreta como eu, cujo interesse como sabem, era da mais pura investigação, não deixando também de atiçar outros desejos masculinos, bem menos prosaicos que o meu.
Não vale a pena pôr-me com coisas, mas verdade seja dita, lá que a rapariga era maciça, ai lá isso era. Ignorando o aviso dos michelin laterais, que nos calham a todas se não tivermos juízo, a alvenaria dela era cheia e sólida. Uma massa compacta bem torneada sob alicerces consistentes, quase inabaláveis que tinham término nuns pés nédios de unhas de tom escarlate, capaz de fazer corar o manto rubro de um qualquer pastor da igreja universal.
Deixando de lado o palavreado alambicado, assumo a gíria de uma vez por todas e para que ninguém fique com dúvidas, Célia Gorete era acima de tudo aquilo que se chama, uma grande cavalona!
Só lamento não ter enxergado com o devido rigor, o modelito da tanga que envergava. Mas era tão demasiadamente reduzido e escondido entre as bochechas dançantes, que só lhe percebi o padrão: tigresse.
Houve até um senhor, coitado, que ficou com os glúteos da rapariga fixos na pupila, que teimavam em não se descolar. Ainda estive mesmo para o ajudar e dizer-lhe, o senhor desculpe, mas tem o biquíni da Célia Gorete dentro do olho e se ali o cepo do Leandro vê, não há-de ficar lá muito satisfeito.
Mas calei-me, os clack-clack dos fechos da lancheira fluorescente do parzinho, estrondeavam no areal, chamando-me de novo. E ele era gordas coxas de frango, louros rissóis de camarão, pála-pála das onduladas, suculentas talhadas de melão que se colavam aos dedos e o cacho portentoso de belas uvas brancas, cujas grainhas eram cuspidas com destreza para a areia em brincadeiras parvas de namorados, provocando-lhes sonoras e impudicas gargalhadas, mas tremores no meu
Tchékhov.
Enjoei confesso e a minha saudável garrafa de frize limão encolheu-se de recato, sentindo-se como ré perante aquele repasto, onde não se admitia qualquer carência de nutrientes.
Resolveram depois ir a banhos, não sem antes Leandro exibir um mergulho acrobático perante as hostes adeptas do passeio à beira-mar e molhar Célia Gorete, que largou um estridente, ai que estúpidoooooooo!
Entre gritinhos histéricos de ais e uis, frases assustadoras como, olha o tubarão, vou-te papar, anda cá minha patanisca e oh parvalhão já te disse para me deslargares e anda masé espalhar-me o creme nas costas, dei por concluída a minha missão e propus novamente deliciar-me com o
Tchékhov.

Encontrei-o amuado comigo e com menos falas que o costume. Fingi não perceber o seu ciúme, nascido da atenção que dei à Célia Gorete e ao Leandro e ignorei as acusações que me fez, à medida que eu avançava nos seus contos: que eu exagerava na adjectivação, nas metáforas e nas comparações e que nos meus textos me perdia na ironia, descambando por ai abaixo demonstrando uma total falta de imparcialidade. Uma reles emotiva, era o que eu era. Uma total ignorante do verdadeiro realismo.
Disso já eu sabia, não me deu ele nenhuma novidade, sou mesmo assim um pouco para o exagerada. Mas continuei a lê-lo calada, como se nada fosse e a pouco e pouco sossegou, permitindo que me perdesse novamente nas suas palavras absolutas, na sua escrita única, sem excessos, sem interpretações, sem críticas inerentes ou pareceres coniventes.
Uma escrita que à primeira vista parece não possuir quase nada, mas que afinal tem tudo, escondido atrás de uma subtileza ímpar.

E o perfume a óleo de coco foi-se dissipando pelo ar ...

26 comentários:

salvoconduto disse...

Eu não direi que sejas uma reles emotiva, mas que tens mau feitio, lá isso tens.
Precisavas de vi com o raio da melancolia do frio? Só de ouvir a palavra começo a transpirar...

E já agora, Gorete? Táz a ver? É mesmo mau feitio!

Pitanga Doce disse...

Patti tens que escolher melhor os recantos das praias que frequentas. Essa invasão de Célias e Leandros tem que parar, menina!Então tu vais toda vestida a intelectual com óculos escuros e chapéu de sol, levando na cestinha de vime ou na sacola de plástico transparente com ondas do mar desenhadas em azul, um livro de Tchekvoc (caraças que tive de copiar o nome)e és interrompida por "oh parvalhão já te disse para me deslargares"? Isto acaba com a inspiração para que mergulhes no mundo dos russos no Verão!

Eu se fosse o Tchekvoc, recusava-me a ir à praia contigo outra vez. Vai que a Célia e o Leandro respingasse no "homem que veio do frio", óleo de côco??? É preciso que haja responsabilidade!
hehehehehehehehehehehehehehhe

CHEGUEI!

Isabel Maria Mota disse...

É bom ler-te... masAinda que seja quando "trocas" Tchékhov por Célias e Leandros! Um beijinho.
E bons "frizes".
Isabel Mota

Justine disse...

Um prazer, ler a tua prosa solta, sarcástica, humana!
Abraço

Anónimo disse...

Eu também trocaria Tchekov pela observação de uma cena semelhante. O meu problema é não gostar de praia no Verão, pelo que só por lá passo, esporadicamente, para montar posto de observação numa esplanada.

De dentro pra fora disse...

Coitados ! tão discretos e tu sempre apostos com a tua imaginação "afiada" prontinha para mais um conto inspirado na "simplicidade" e discrição deste parzinho tão amoroso...

Álex disse...

; ) bom voltar a ler-te

PAS[Ç]SOS disse...

É que a vida precisa de contrastes e se o Tchékhov gela, há que descobrir Célias e Leandros para aquecer até ao exagero, antes de regressar ao razoável absoluto. É que há dias de Verão em que precisamos de nos equilibrar para ganhar fôlego... na escrita!

Luísa A. disse...

Patti, por favor, continue a saber compatibilizar o seu Tchékhov com as Célias e os Leandros, porque sabedoria é isso mesmo, conhecer todos os lados da vida. Eu, que também, como o Carlos, mal frequento a praia, tenho esse gravíssimo «handicap» cultural e a Patti ajuda-me a superá-lo com estes seus quadros perfeitamente «fotográficos». ;-)

Gi disse...

Este post não vai explodir depois de lermos, não?
É que juntar Chekov, Célia e Leandro numa praia é uma missão impossível que tu lá cumpriste a preceito.

Patti disse...

Menina Luísa:
Eu vou tentar, eu vou tentar mas não prometo nada, pois estes espécimes sazonais exigem muito de um ser humano... :-)

anniehall disse...

:) Nunca deixe de ir até à praia :)
Resultado de uma talentosa imaginação e/ou apenas de um talentoso dom de observação , o resultado é simplesmente delicioso :)
Ana

Violeta disse...

Depois deste filme tão bem descrito, consegui imaginar todos os pormenores.
Patti tenho a certeza d euma coisa: se mais Célias Góretis e leandros te lessem ficavam cheios de inveja... e não há qualquer dúvida que não seria do Tchékhov.
bjs e continua assim, na caparica ou em outra praia qualquer

cristina ribeiro disse...

Pois, pois, mas cá em cima arranjava personagens mais coloridas e donas de um vernáculo...

fugidia disse...

Deliciosa, a Célia.
Mas... e o Leandro?
Aguardo aguada a resposta em forma de metáforas e comparações exageradas e adjectivadas mais, muito mais do que simplesmente... q.b.
:-)))

Raquel Rosmaninho disse...

Patti, que texto delicioso.
Aqui no Porto também tinha pano para mangas. Aqui há como que um "universo paralelo" digno de ser observado e descrito como só alguns sabem.
Os telefonemas no Metro, por exemplo, são qualquer coisa de surreal.

Rosa dos Ventos disse...

Bela e realista crónica de um Verão antecipado que entretanto se foi!
Quando voltares à Caparica vê se encontras este par outra vez, porque é uma fonte inesgotável de criatividade, pense lá o Tchéchov o que quiser!

Abraço

Raquel Rosmaninho disse...

Patti, volto para dizer que a Raquel que comentou o post anterior era eu, Rosmaninho, não sei o que aconteceu para ter aparecido como Raquel (é de facto o meu nome), mas de qualquer forma obrigada por me receber tão bem no ares, ainda que pela segunda vez.

Patti disse...

Fugi:
‘Atão’ (como diria a Célia Gorete), o Leandro é o tal cepo robusto, esculpido numa só peça, de pilosidade intensa!

Aquele tipo de másculo de ginásio, que acumula pesos nas máquinas dos bíceps, transpirando em agonia rios de um fluído brilhante e odorante, bem próximo da inundação, que no entanto consegue travar, quando chucha naquelas garrafinhas cinzentas que se vendem no Decathlon, cheias de um líquido suspeito.

Pitanga Doce disse...

Tens resposta lá na árvore. A Célia não chega aos pés na Norminha. hehehe

Lucia Luz disse...

Que delícia de texto!
E acredito que no fundo no fundo Tchékhov também gostou de observar a dupla!

Beijinhos

Nina disse...

Leandro? ahahahaha

Como pode alguém escrever tao bem? me diz mulher!!

mike disse...

Patti, o jeito é passar mais tempo no mar que na areia. Em cima das pranchas não há assim tantos Leandros e Célias. ;)
Fiquei a pensar qual seria o aroma de tão deliciosa crónica... cítrico? (risos)

Patti disse...

Mike:
Aromática, aromática será a crónica seguinte.

maria inês disse...

ahahahhaha! Já este ano, numa praia perto de nós, me deliciei com uma história destas! óleo de coco, já nem me lembrava de semelhante "petisco"!

Filoxera disse...

Como tu consegues dividir-te entre a "apreciação" destas cenas popularuchas e a concentração num Tchékhov!
Será que adiantaste a leitura?