Hippies e Yuppies
No meu tempo fui hippie. Acreditava que o amor tudo podia, que a guerra era o grande erro do homem, a paz a sua salvação e a liberdade, a sua maior conquista. Confiava na não-violência, no amor livre.
E não, o meu mundo dos 60's e 70's, tinha muito pouco de cor-de-rosa, engana-se quem assim o julga. Na Europa imperavam ditaduras obsoletas, o mundo vivendo uma coexistência pacífica durante uma guerra fria, receava um terceiro grande conflito mundial, conservava-se a espada de Hiroshima sobre as nossas cabeças, desconhecia-se o avanço do poder nuclear, mas aqui e ali ouvia-se falar de experiências atómicas no pacífico, praticavam-se diferentes regras sociais entre pretos e brancos e o apartheid, era aceite como algo absolutamente normal. As duas super potências, estendiam viscosamente os seus longos tentáculos até ao fundo da litosfera, dominando, ora disfarçada, ora abertamente, o mundo de então.
Com 19/20 anos nada podíamos fazer, mas tínhamos fé, usávamos a voz, o corpo, a nossa imagem. Possuíamos uma fome intelectual insaciável, acreditávamos na força da música, na palavra dos poetas, na realização de sonhos e exigíamos um futuro diferente.
Verdade será também, que vivíamos existências por vezes psicadélicas, praticávamos actos de loucura inconsequente, tínhamos visões utópicas para o futuro e defendíamos anarquismos impraticáveis. Mas sempre fomos participantes, poucos se demitiam do seu papel de cidadãos do mundo, abraçávamos as causas do nosso tempo, criámos um símbolo da paz, contestámos os valores tradicionais da nossa sociedade, fizemos frente ao poder económico, militar e político. Vivemos de forma intensa aquele tempo, que era o nosso. Peace and Love. Make Love not War. Flower Power.
Depois fui assentando, casei com um homem quimérico igual a mim e tive um filho, que entreguei aos 80's.
No meu tempo fui yuppie. Depois da licenciatura e da pós-graduação numa universidade impactante, acreditava na bandeira hasteada do sucesso da carreira, na ambição profissional para escalar o organograma empresarial, na competitividade das corporações, no rápido enriquecimento e quem sabe, usufruir alguma vantagem dando um saltinho pela política. No meu special way of life, havia espaço para toda uma parafernália de prazeres materiais que me atribuíam status pessoal. Fato no alfaiate, monograma na camisa, botões de punho, o aparato do primeiro telemóvel, um carro deixando lastro à sua passagem, apartamento design, a ostentação das marcas na roupa casual. O golfe, o squash, o clube, o sushi, o bar da moda, a assinatura anual de uma importante revista empresarial estrangeira.
Não foi fácil. Tivemos de escalar bastante nesta busca desmesurada para alcançar o sucesso, lutar contra aquelas ideias tontas do saber, da ética e dos valores retrógrados. Insanidades ultrapassadas, de que os fins não justificam os meios e ingénuos delírios de que bastava ser e não parecer. Absorver ao limite todas aquelas normas de conduta na sociedade, invisíveis e em nenhum lado escritas, mas onde não se permitiam falhas, percalços ou um ínfimo deslize.
É um facto de que envelheci cedo, o tempo contado ao segundo, o stress causado por esta forma de manutenção da vida, o cansaço mental e físico para manter este estatuto a funcionar, sem intervalos ou descanso. A família onde não investi.
Depois fui assentando, casei com uma mulher carreirista igual a mim e tive uma filha, que entreguei ao segundo milénio.
No meu tempo não sei o que sou. Sinto muito poucas certezas, possuo uma infinidade de questões e dezenas de dúvidas. Não tenho por que lutar, não vejo por onde seguir ou para quê me esforçar.
Tenho avós que transportam em si histórias devaneadoras e uns pais, que me impressionam de sucesso e dinheiro. A avó, diz que hoje não sabemos como se sonha, o pai pensa que somos uns desinteressados e eu, que vivemos desapaixonados.
O ambiente existente é contraditório. Tanto se fala do facilitismo presente, como de um futuro sombrio, que todos os jovens são admitidos na faculdade, mas que só poucos conseguem um emprego promissor, que hoje temos acesso a toda a informação, à internet e ao mundo, bastando tocar numa mera tecla, mas mesmo assim seguimos indolentes e insatisfeitos.
O pai oferece-me mais um gadget e que falamos mais tarde, o que nunca acontece. A avó zanga-se comigo, dizendo que provavelmente a culpa não será toda nossa e que somos uma geração que podia ter o mundo nas mãos, mas que desperdiça um tempo precioso no vazio. Enfiamos a cabeça na areia que tem aspecto de ecrã. Ecrã de televisão, de computador, de consola, de telemóvel. Não entende a nossa apatia, diante este presente tão cheio de problemas como as questões ambientais, a fome no mundo, o envelhecimento da população, a crise geral; esta chata palavra crise; palavra curta mas que repetida até ao infinito se alonga, e alonga, e alonga pelos meus dias.
Parecemos fingir que tudo está no bom caminho, apesar de o sabermos falso, e podemos por vezes parecer ignorantes, mas não o somos. Todos nós escutamos palavras-chave como endividamento, desemprego e despedimentos em massa, falências, corrupção, pobreza crescente, pensões miseráveis, infindáveis listas de espera nos hospitais, medicamentos caros, políticos pouco credíveis...
Talvez um dia eu assente e case com alguém desmotivado igual a mim, mas não sei se terei filhos. Para os entregar a quê?
E não, o meu mundo dos 60's e 70's, tinha muito pouco de cor-de-rosa, engana-se quem assim o julga. Na Europa imperavam ditaduras obsoletas, o mundo vivendo uma coexistência pacífica durante uma guerra fria, receava um terceiro grande conflito mundial, conservava-se a espada de Hiroshima sobre as nossas cabeças, desconhecia-se o avanço do poder nuclear, mas aqui e ali ouvia-se falar de experiências atómicas no pacífico, praticavam-se diferentes regras sociais entre pretos e brancos e o apartheid, era aceite como algo absolutamente normal. As duas super potências, estendiam viscosamente os seus longos tentáculos até ao fundo da litosfera, dominando, ora disfarçada, ora abertamente, o mundo de então.
Com 19/20 anos nada podíamos fazer, mas tínhamos fé, usávamos a voz, o corpo, a nossa imagem. Possuíamos uma fome intelectual insaciável, acreditávamos na força da música, na palavra dos poetas, na realização de sonhos e exigíamos um futuro diferente.
Verdade será também, que vivíamos existências por vezes psicadélicas, praticávamos actos de loucura inconsequente, tínhamos visões utópicas para o futuro e defendíamos anarquismos impraticáveis. Mas sempre fomos participantes, poucos se demitiam do seu papel de cidadãos do mundo, abraçávamos as causas do nosso tempo, criámos um símbolo da paz, contestámos os valores tradicionais da nossa sociedade, fizemos frente ao poder económico, militar e político. Vivemos de forma intensa aquele tempo, que era o nosso. Peace and Love. Make Love not War. Flower Power.
Depois fui assentando, casei com um homem quimérico igual a mim e tive um filho, que entreguei aos 80's.
No meu tempo fui yuppie. Depois da licenciatura e da pós-graduação numa universidade impactante, acreditava na bandeira hasteada do sucesso da carreira, na ambição profissional para escalar o organograma empresarial, na competitividade das corporações, no rápido enriquecimento e quem sabe, usufruir alguma vantagem dando um saltinho pela política. No meu special way of life, havia espaço para toda uma parafernália de prazeres materiais que me atribuíam status pessoal. Fato no alfaiate, monograma na camisa, botões de punho, o aparato do primeiro telemóvel, um carro deixando lastro à sua passagem, apartamento design, a ostentação das marcas na roupa casual. O golfe, o squash, o clube, o sushi, o bar da moda, a assinatura anual de uma importante revista empresarial estrangeira.
Não foi fácil. Tivemos de escalar bastante nesta busca desmesurada para alcançar o sucesso, lutar contra aquelas ideias tontas do saber, da ética e dos valores retrógrados. Insanidades ultrapassadas, de que os fins não justificam os meios e ingénuos delírios de que bastava ser e não parecer. Absorver ao limite todas aquelas normas de conduta na sociedade, invisíveis e em nenhum lado escritas, mas onde não se permitiam falhas, percalços ou um ínfimo deslize.
É um facto de que envelheci cedo, o tempo contado ao segundo, o stress causado por esta forma de manutenção da vida, o cansaço mental e físico para manter este estatuto a funcionar, sem intervalos ou descanso. A família onde não investi.
Depois fui assentando, casei com uma mulher carreirista igual a mim e tive uma filha, que entreguei ao segundo milénio.
No meu tempo não sei o que sou. Sinto muito poucas certezas, possuo uma infinidade de questões e dezenas de dúvidas. Não tenho por que lutar, não vejo por onde seguir ou para quê me esforçar.
Tenho avós que transportam em si histórias devaneadoras e uns pais, que me impressionam de sucesso e dinheiro. A avó, diz que hoje não sabemos como se sonha, o pai pensa que somos uns desinteressados e eu, que vivemos desapaixonados.
O ambiente existente é contraditório. Tanto se fala do facilitismo presente, como de um futuro sombrio, que todos os jovens são admitidos na faculdade, mas que só poucos conseguem um emprego promissor, que hoje temos acesso a toda a informação, à internet e ao mundo, bastando tocar numa mera tecla, mas mesmo assim seguimos indolentes e insatisfeitos.
O pai oferece-me mais um gadget e que falamos mais tarde, o que nunca acontece. A avó zanga-se comigo, dizendo que provavelmente a culpa não será toda nossa e que somos uma geração que podia ter o mundo nas mãos, mas que desperdiça um tempo precioso no vazio. Enfiamos a cabeça na areia que tem aspecto de ecrã. Ecrã de televisão, de computador, de consola, de telemóvel. Não entende a nossa apatia, diante este presente tão cheio de problemas como as questões ambientais, a fome no mundo, o envelhecimento da população, a crise geral; esta chata palavra crise; palavra curta mas que repetida até ao infinito se alonga, e alonga, e alonga pelos meus dias.
Parecemos fingir que tudo está no bom caminho, apesar de o sabermos falso, e podemos por vezes parecer ignorantes, mas não o somos. Todos nós escutamos palavras-chave como endividamento, desemprego e despedimentos em massa, falências, corrupção, pobreza crescente, pensões miseráveis, infindáveis listas de espera nos hospitais, medicamentos caros, políticos pouco credíveis...
Talvez um dia eu assente e case com alguém desmotivado igual a mim, mas não sei se terei filhos. Para os entregar a quê?
26 comentários:
Muito interessante este post.
É uma realidade que me fascina imenso e que marcou várias gerações nas últimas duas décadas.
Esse fenómeno foi bastante desenvolvido por Douglas Coupland nos anos 80 e 90.
Seu post me fez ver melhor quem sou eu neste contexto...sou a menina com uma visão utópica para o futuro,que continua abraçando as causas nas quais acredita.Mesmo assentada, meu espírito continua acreditando nos ideais dos anos 60/70. Embora eu tenha vivido muito na época do movimento yuppie, parece que desenvolvi uma certa aversão à estes novos valores.
Uma parte dessa vida condicionada me consome diariamente, mas o espírito indócil não me deixa ser conquistada.E assim sendo já agi muito na contramão e não pretendo ser diferente.
Nem tanto o céu, nem tanto a terra, me vejo num meio satisfatório :o)
Suas palavras soaram como música aos meus ouvidos...
Bjos
Felicidade a minha que atravessei essas gerações todas e ainda espero pela outra.
Não sendo saudosista a que me marcou foi a de sessenta, mas que dava jeito um telemóvel naquela altura lá isso dava, vi-me muitas vezes aoisar demasiadamente o risco sem possibilidade de avisar por onde andava...
Execelentes retratos, só te esqueceste dos charros e sucedâneos atravês deses tempos.
Gostei de ler o que o seu parceiro diz. Tanto quanto o que li aqui.
No meu tempo fui hippie fora de tempo; no meu tempo chamava-se ser freak; agora chama-se ser do Bloco de Esquerda.
No meu tempo nunca fui yuppie, mas sou yeppie e neppie.
No meu tempo sou velha de corpo mas jovem de espírito, ao contrário dos mais novos que são jovens de corpo e velhos de espírito.
Começo por repetir o comentário que fiz lá no Rochedo:
O mais difícil nestas Crónicas da Graça, é conseguir comentar individualmente, mas provavelmente tamabém será esse mesmo o objectivo.
Duas leituras complementares, que se apresentam ricas de factos históricos e pessoais, numa viagem alucinante por cinco décadas.
Venham mais.
E acrescento: Entrar na pele de cada um dos intervenientes despoleta emoções que só são verdadeiramente compreendidas se lermos o ponto de vista factual do CBO.
Parabéns a ambos
...ao futuro, talvez, com tudo o que são incertezas mas também esperanças?
...ficou melancolia, aqui.
um bom fim-de-semana,
J.
Todas as gerações têm a sua utopia, umas era a liberdae, outras os bens materiais e acredito que muito em breve teremos a geração que se vai preocupar com o meio ambiente e com os valores da dignidade humana.Quero acreditar que será a próxima.
gostei presidentA
bom fim de semana
Nunca o fui. Nem descendo de quem o tenha sido ainda que nessa altura, com todo o fogo e entusiasmo, tenha vivido.
Gosto demais deste pedaço Patti.
A tua escrita leva-nos pelos caminhos que desenhas fazendo-nos parar, por vezes abruptamente, em pensamentos que aposto ;) fazes de propósito por despoletar.
Desejo-te um excelente fim-de-semana e se já era fã do teu dia-a-dia, considera-me na primeira fila às 6ªas feiras *
Beijinho
Eles foram hippies e alguns de nós herdamos essa forma de sentir a vida. Outros tornaram-se yuppies numa aldeia globalizada, individualizada e competitiva, e colheram o que semearam. Cada qual adopta o seu estilo de vida, alicerçado nas suas opções, crenças e ideias. Depois são as suas atitudes, utopias e valores que passam aos filhos, que os molda e consciencializa o processo de educar perante si próprios. Vivemos num mundo sem tempo, sempre a mil à hora, em que tudo nos chega com instruções de uso, numa miríade de opções e fantasmas. O estilo e conceito de vida que proporcionamos aos nossos filhos marcam a forma como eles irão encarar cada dia, cada conquista, cada problema e cada falhanço. Esperemos que não se tornem nuns zombies.
Muito interessante a visão de cada um dos representantes de uma época.
Os dois primeiros, antagônicos em seus ideais e em suas idéias, pelo menos viveram seus sonhos e, a seu modo, tentaram melhorar o mundo. O último, sem idéias nem ideais, sem nem mesmo ter o que passar a seus descendentes, perde-se num mundo vazio e enganoso que parece caminhar para lugar nenhum...
Patti,
Acabei de ver o filme da minha vida.
Sou a Avó que não vê um horizonte muito risonho para os netos.
Os filhos foram ainda educados com romantismo mas muito sentido prático.
A geração seguinte só dá, como eles dizem, Amor aos filhos mas muito pouca educação e muito pouca preparação para a tal da "crise" que ameaça perpetuar-se neste malfadado 2º milénio.
Ainda não li o teu parceiro mas a tua perspectiva geracional por seres mulher caiu-me que nem uma luva.
Patti,
gostei mesmo muito! tanto.
é excelente ter os vossos olhares sob um mesmo tema.
bom fim semana
Li os dois mas pendi para este.
Ambos estão excelentes, mas um é mesmo Crónica e o outro tem uns toques a que já nos habituaste aqui nos Ares.
Beijinhos
Parabéns e obrigada por estas Crónicas de Graça... sem o vosso blogobairro que eu tanto gosto de visitar, a blogosfera nãoseria a mesma... faltava-lhe cor...
Como cantava Bob Dylon,na época, "the answers" para todas as aspirações desses Hippies " were blowing in the wind ".
Acabo de chegar espectáculo do Sérgio Godinho, Zé Mário Branco e Fausto. Releio o seu post , ainda com os decibéis a bailarem nos ouvidos, tudo faz ainda mais sentido. Encontrei por lá hippies já avós. No palco e na plateia. Gente como esta que refere neste belíssimo post onde, como já nos habituou, caracteriza as personagens de forma perfeita.
Ter conhecimento vivido destas 3 épocas não me leva a ter soluções! Ou se calhar sim, sou ainda capaz de sonhar, apesar doa passos atrás que o mundo tem dado!
Excelente crónica
(e tenho divertido muita gente com o teu teste de portugês. Quando tiveres mais, publica:))
Arrepiante, este teu post.
Um beijo grato.
Patti, a caracterização das três gerações está [quase] perfeita. Digo quase porque o que me impressiona na terceira geração (refiro-me à realidade portuguesa, admitindo que uma percepção de âmbito planetário possa ser diferente) não é tanto o desnorteamento e a desesperança, como o desejo de fuga, a convicção de que há um futuro, e um futuro bom, mas fora daqui. De que as suas capacidades e os seus talentos não cabem neste cantinho, que não tem, sequer, a possibilidade de os apreciar, quanto mais aproveitar.
Estou a gostar imenso destas vossas (suas e do Carlos) crónicas, que nos vão trazendo à memória coisas do passado e fazendo reflectir sobre o presente. Qual é o próximo tema? :-)
Sem ler o texto do Carlos, segui o link para este. O que mais me encantou foi a forma estilística usada. Captou-me do princípio ao fim. Gostei muito!
Patti
Como sempre os teus posts são excelentes. Este, acho-o especial, porque tenho um adolescente em casa e não sei ao que ele se quer entregar...
No meu tempo... No meu tempo vivemos à pressa na voragem do Tempo.
Vizinhança:
Muito obrigada mais uma vez pela adesão às Crónicas de Graça e pelos vossos comentários. Temos todos um pedaço de nós, em cada uma destas personagens.
Luísa:
Secret...
Maldonado:
Muito bem-vindo ao Ares.
Patti, o Douro de Carlos me tomou por inteira na última quinzena, mas agora, o seu post me trouxe a síntese: tese, antítese e síntese: hippies, yuppies e a angústia do desalento. Sejamos todos bem vindos 'a contemporaneidade. Beijo meu, amei seu post.
Um abração para ti, querida Pati, da minha cidade... embora não tenha a certeza qual das duas cidades: PORTO ou D'DORF seja a minha cidade realmente. Penso, que sejam ambas.
Dentro em breve estou em D'dorf, até lá beijinhos.
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