segunda-feira, 15 de novembro de 2010

tormenta


Era a décima-quinta vez naquele ano, que Tormenta passava pelo cio. Da praia eu conseguia-a perceber. O mar ficava mais transparente, a espuma barulhava baixinho e as ondas já não rebentavam com força na areia; desmaiavam com lascívia suavemente.
Egoísta, seu marido senhor Adamastor, não queria filhos. Nestes dias escondia-se de Tormenta nas esquinas do Cabo, avistando as naus que lá vinham, carregadas de ardentes machos lusitanos. Possuído pelo ciúme as afundava, revirando o Cabo em sofrimento e morte.
Dias e dias seguidos sem lhe aparecer.
Tormenta tivera sempre muita esperança. Punha-se ainda mais bela. Penteava as ondas do cabelo, retirando-lhe os ouriços, ajeitava as algas e conchas do corpo, fazendo uma escolha nas lascadas e partidas e pedia-me que lhe trouxesse no meu bico, folhas e flores da terra. Queria enfeitar-se para o marido, senhor Adamastor.
Preferia uma menina, uma Tormentinha, para lhe ensinar a bordar sulcos profundos nas escarpas, enfiar colares de búzios e escamas de peixe, e rebentar o corpo de encontro às rochas com a força do mar, elevando-o tão alto que pudesse ver a terra do outro lado do Cabo.
Seu marido tardava. Tormenta vendo aproximar-se mais um final do seu cio, pedia-me que voasse até ele e o fosse espreitar.
Lá andava Adamastor, cruel e assassino, engolindo nos seus braços-onda, as naus que chegavam àquela dobra do Cabo, repletas de esperança.
Também a esperança de Tormenta, morria nestes dias.
Era triste vê-la chorar. O mar a perder o azul, as ondas começando no rugir, a espuma passando de branco a cinzento.
E mais uma vez, regressava sem Esperança ao Cabo a velha Tormenta.

9 comentários:

Gi disse...

Mas, um dia houve, que se tornou o cabo bojador, e lhe marulhou ao ouvido como convencer Adamastor a torná-la bojuda e, nesse dia, passou a haver boa esperança e temperança para os marinheiros no mar, também eles, engravidando o Mundo e dando-lhe novos Mundos.

paulofski disse...

Que poética visão de um relacionamento amoroso tão atormentado. Seria Camões um conselheiro matrimonial?

Justine disse...

Poético, profunda e fulgurantemente poético! A capacidade que não é de todos de transformar a realidade, dando-lhe piceladas oníricas e prodigiosas.

Luísa A. disse...

Muito giro este seu texto, Patti. E o trocadilho final explica tudo; ou a razão por que Bartolomeu Dias e os seus homens merecem ser os nossos heróis. :-D

Braulio Pereira disse...

gostei de vir aqui

voltarei com mais calma


abraço!!

Anónimo disse...

Delicioso post, com tanta poesia e tantas leituras possíveis, Patti

Filoxera disse...

Uma linda tormenta com uma maré musical bem pacata...
:-)
Beijos.

BlueVelvet disse...

Uma imaginação prodigiosa e a originalidade de sempre.
Uma beleza.

Rosa dos Ventos disse...

Lindo, cheio do marulhar das ondas...

Abraço