sexta-feira, 26 de setembro de 2008

com abrigo - #5

voluntariado de apoio aos sem-abrigo, aqui.

Ter sido ela, a primeira a saber que o vizinho do cartão do lado tinha morrido, fora uma sorte. Os mortos só levam a roupa do corpo, por isso o carrinho de compras ficaria para si. Até na rua, quem chega primeiro é quem leva vantagem.

E que grande ajuda ia ser. Já não aguentava por muito mais tempo com o peso de toda aquela sacaria, que acartava em cima dos seus sessenta e cinco anos. Mas não se podia desfazer de nada, pois guardava coisas valiosíssimas que todos cobiçavam.


Feliz com a sua sorte, começou a arrumar todos os tesouros no carro novo.

Ali bem à mão, enroladas em voltas mil e num cuidado extremo, estavam as suas valiosas jóias, as guitas, cordas e cordéis que juntava há muito tempo. Eram essenciais à sua sobrevivência na rua, pois prendiam-lhe os sacos de valores uns aos outros e à sua perna quando ia descansar, e amarravam fortemente todos os seus cartões-colchão, que a impediam de sentir o frio da pedra mármore, lá no vão de escada que lhe servia de quarto.


Eram os melhores cartões das redondezas e conseguia-os ali, na tipografia do beco, porque o rapaz das entregas lhe tinha dito uma vez, é tão parecida com a minha avó!

Encadernavam-se obras finas em caixas especiais, que ele lhe dava quando tinham defeito. Eram revestidas por uma película fofa e branca e ficavam sempre para ela.


Espalmou-as e ordenando-as por tamanhos, enfiou-as no fundo do carrinho. Por cima vinha o enorme saco de desporto, já sem cor definida e de pegas rasgadas, mas onde lhe cabiam todos os trapos de Inverno; camisolas grossas, calças e saias, o sobretudo e a gabardina e três camisas de flanela mole. Não gostava de bagunça e por isso a roupa interior guardava-a à parte, no saco de fecho que pediu na boutique da moda, onde iam sempre as miúdas de agora. Era lindo, com enormes flores amarelas.


Então Jú, apanhaste-lhe o carro das compras? Olha, eu cheguei no fim e só consegui isto. O ‘isto’ era a garrafa de vinho já vazia. Larga o vinho Zé, que ainda morres cedo.

E continuou nas arrumações da casa.

Sapatos, além dos calçados, só tinha mais uns que não lhe serviam. Paciência, alguém os havia de querer e nessa altura trocaria por algo que lhe fizesse falta, como um gorro para o frio ou outra manta velha.

A caixa da louça que lhe custava tanto a acartar, podia agora ser arrumada ali na perfeição. Fizera bem em não se desfazer dela como lhe insistiam em dizer, oh Jú, larga isso aí num canto, não te serve para nada e andas toda torta com esse carrego todo. Eu é que sei da minha vida. Isso é que era bom! Queriam era ficar com os tarecos dela, que tanto lhe tinha custado a juntar; talheres, dois copos, um prato, duas tigelas rachadas, um púcaro de alumínio, uma caixa de plástico com tampa e tudo! E a jóia da coroa, o termos de café ainda do tempo de quando tinha casa cheia de família, que também já fora unida.

Tornou a dobrar com muito jeito os já e sempre bem arrumados sacos de plástico; uma colecção de grandes, pequenos e médios. E dentro do maior deles, apertou com um cuidado extremo a sua nova almofada de penas, disfarçada com uma fronha velha e descosida, feita para despistar olheiros. Ninguém na rua tinha uma e muito menos grande e fofa como a dela. Fora oferecida pelas voluntárias do canil, que lhe conheciam o frio na espinha e soube imediatamente qual o destino a dar-lhe.

Oh meu Deus, o canil! Com a novidade do carrinho das compras e a alegria das arrumações, esquecera-se por completo do canil.


Com um passo muito mais ligeiro que o do passado e aliviada do peso, graças à nova aquisição, chegou lá num instante.

Então Jú, a Musa já tinha perguntado por ti e está para ali numa inquietação que ninguém a cala. Contou-lhes rapidamente da novidade e apressou-se para junto dela, que nessa altura e depois de lhe sentir a voz no portão, gania tão alto que era impossível não ficar rouca. A loucura da saudade era tanta, que parecia uma tonta aos saltos à volta dela, ladrando sem parar e sem ligar às dores nas pernas doentes e fracas.


Fora das primeiras, a inscrever-se como família de acolhimento daquele canil. A Musa já era a “sua” terceira cadela. Todas as manhãs, depois da sopa dos pobres, ia buscá-la para passarem o dia juntas. Amigas do coração, passeavam em Lisboa pelos jardins, onde havia crianças que lhe ofereciam festas e as bolachas do lanche, descansavam à sombra junto ao rio e almoçavam sossegadas nas traseiras do refeitório do ministério. A deficiência das patas traseiras, resultado de um atropelamento, a partir de agora não iria atrapalhar mais o andar da Musa. Jú colocou-a no carrinho do supermercado, mesmo em cima da sua preciosa almofada e ficaram com a cara ao mesmo nível, para poderem conversar, sorrir e beijar. Assim, Musa ficou a salvo das arrogantes biqueiras, calçadas nos pés dos animais humanos, que a enxotavam do seu caminho sempre apressado.


Entre lambidelas, contou-lhe as novidades da gata amarela e dos seis bebés, do veterinário que se tinha esquecido de dar a vacina ao Jonas, da entrada de uma nova voluntária, que ali havia chegado com cobertores e mantas novas para o Inverno. Todos os dias lhe dizia, que tinha muita pena de não poder ser dela para sempre, para poderem dormir juntas todas as noites. Não se importava de ficar na rua nem ao frio, afinal a Jú não dizia que se aquecia com o termos do café? E deitava-lhe um olhar comprido.

Já sabes que também tenho pena, e estar contigo todo o dia é quase um favor que me fazem em atenção a outros tempos. E falava-lhe da casa onde já vivera, do marido que desaparecera, dos filhos e das saudades que sentia, mas que preferia arrumar no fundo dos seus velhos sacos. Dos imprevistos, das más surpresas, do destino e da sorte e do amanhã que não lhe sorriu. Do quão invisível era a sua passagem pelas ruas, aos olhos dos outros.

Voltavam ao canil às cinco, depois de lancharem os produtos fora de prazo.

Foi bom o vosso dia? Por onde andaram hoje? E que tal a tua almofada nova, Jú?

Entre lágrimas secas, olhares à Carlos Tê, tristes e sós, narizes húmidos e orelhas baixas, ainda conseguiu responder, a Musa adorou-a!


A Musa?



foto de bruno espadana


apoio aos animais de rua, aqui.

26 comentários:

BlueVelvet disse...

Mais um para a tua colecção de magníficos textos.
Triste realidade a que descreves.
vou já ali clikar no selo dos animais de rua.
Pena é que não haja um também para os sem-abrigo.

Gi disse...

Pessoas com coração bem cimentado e arquitectado, verdadeira obra de
engenharia, espaçoso, cheio de quartos abrigados e acolhedores ... enfim, tenho pena de não conseguir ser tão despojada de coisas e situações que não me fazem falta e a que dou atenção,para poder ficar com mais espaço e mais arejada para causas humanitárias.

Vera disse...

:) Que bonito Patti! Hoje não estou particularmente bem para comentar, nem pra escrever, nem para nada. Depois volto cá, com cabeça de Vera e paciência de escritora/comentadora.
Beijos enormes!

maria inês disse...

excelente esta tua forma de retratar umas das maiores misérias do nosso mundo, o abandono!

bom fim de semana Patti!

maria inês disse...

voltei, esta musica é fantástica, vou "roubar" para o meu outro eu, posso?

Anónimo disse...

Texto muito bonito e profundo.
bjos

Patti disse...

Inês:
Claro que sim.

cecília disse...

Patti,
Hoje não brinco consigo.
Não consigo.
Mais uma vez, deixou-me com as lágrimas nos olhos com um texto escrito por si, acompanhado por fotos....sei lá...como as classificar? Impressionantes? Sim, talvez seja a palavra mais acertada. E continuo a não brincar quando concordo com aquilo que já aqui foi dito em outros comentários: reúna estas histórias num livro, por favor...
Beijinhos.

De dentro pra fora disse...

Mais uma vez, fico assim como que sem saber o que dizer...


Bom fim de semana

Nina disse...

as palavras, as fotos e a música que toca, patti, foram de uma sintonia perfeita.
como falou a ines, vc retratou de forma linda essa triste chaga no mundo, que é o abandono.

lindo mais uma vez te ler

Ka disse...

Patti,


Tu és uma pessoa especial...só podes (e atenção que isto não é lambebotismo, é verdade mesmo) a sensibilidde que tu tens e a forma como consegues pô-la "no papel" é fabulosa.

É sempre um momento diferente da minha manhã quando venho a este blog.

Quanto ao tema, o abandono é uma das coisa que mais me impressiona e sinto-me sempre responsável. É preciso termos sorte na vida e há quem não a tenha em momentos cruciais.

Beijinho e obrigada :)

Pitanga Doce disse...

Quantas histórias têm para contar estas mulheres (principalmente)que andam pelas ruas com seus trapos e pertences valiosos! Como terão ido parar ali? Que "pecado" cometeram para serem banidas assim da família? Fico a pensar.

beijos, Patti e bom dia

paulofski disse...

Roubo um bocadinho da minha hora de almoço, para aqui ficar, sereno e em paz, lendo-te. Nem mesmo o estômago que reclama a minha atenção me distrai. Não faz mal. Vou já. Primeiro a minha sopinha de letras que cheira tão bem.

Teresa Durães disse...

o abandono dos animais é um crime. a miséria dos sem abrigo

Rosa dos Ventos disse...

Um terno e comovente texto!
Lá fiquei eu com os olhos rasos de água e de mágoa...

Abraço

Anónimo disse...

Conheci uma parecida, a Zaida, uma velhinha atraente e rezingona, que guardava uma caixa de papelão, cheia de cartas atadas com cordeis, no cofre forte da Caixa Geral de Depósitos. Infelizmente morreu atropleda.

Quem me dera saber escrever assim tão bem, para contar a história dela.

anniehall disse...

Parabens .
:)
Bom fim de semana

1/4 de Fada disse...

Faço coro com a Cecíla. Os teus textos merecem mais estar editados do que muitos livros que andam por aí. O link que puseste era o que eu andava á procura há um tempo para complemento de um texto que tenho. um dia destes vais vê-lo, porque se há coisas que me revoltam são os animais abandonados, é um velho trauma de miúda que nunca me vai largar.

Essência Pura disse...

Tuas palavras são sempre uma lição...Me comoves...e muito...

Feliz final de semana

Beijos

Miriam

Filoxera disse...

Uma história belíssima que nos conta uma realidade dura e, infelizmente, cada vez mais frequente...
És uma escritora fabulosa!
Beijinhos sensibilizados.

SONY disse...

Patti,

infelizmente uma realidade, que com a correria da vida por vezes nos passa em frente aos nossos olhos, e por vezes nem repararmos, porque também por vezes não está ao nosso alcance "ver" tudo! Pena é que quem pode "ver" e fazer por seres vivos, humanos ou não, não faz!

Mostras aqui duas coisas verdadeiras:
por vezes não é preciso riqueza material para sermos felizes, apenas a riqueza que não se compra nem vende: carinho, partilha, compaixão, amizade, atenção!

Sem dúvida que por vezes os animais conseguem superar os seres humanos!

Haja gente para alertar destes exemplos de vida, que acabam por ser exemplos de uma força e de luta pela sobrevivência, que me fazem pensar sempre que sou uma felizarda! E que tenho TANTO!

Jito,
Sony

JC disse...

Um belo texto que nos alerta para os males da sociedade e que não têm fim à vista.

Rita disse...

História triste e linda ao mesmo tempo. A foto faz-me lembrar a capa do "Timbuktu" do Paul Auster que também adorei...
Jokas

Nelson Soares disse...

Parece quase irónico a beleza do texto e a tristeza do tema e da realidade que trata e retrata.


Gostei. É fiel à realidade e não se perde em discussões inúteis e parvas sobre a situação dos "fantasmas da sociedade". É sensível e terno.

Dizer que gostei é escusado. E até vago.


Stay Well...



p.s.: tenho um parecido no meu blog. Gostava que o visses...

LeniB disse...

Depois de ler o texto e alguns comentários,que mais dizer? Só mesmo a tua sensibilidade...continua!!!

MaRiE disse...

Chorei, fiquei com o coraçao pequenino, mas também com um sorriso na cara. Ao fim de tanta miséria ainda encontraram uma amizade verdadeira.