Sentava-se à hora de almoço, como se não houvesse mais ninguém ali. E dominava a mesa com o ritual diário.
Sacro.
O guardanapo de pano ainda tentava fugir. Queria ser levado pelo vento. Mas a brisa não tinha força para o carregar. Se ainda fosses de papel… segredava-lhe todos os dias o vento. Sacudia-o com firmeza, que até estalava e apertava-o no pescoço, com nós fortes e rudes, não fosse a gravata roxa ficar suja da gordura que gostava sempre de escorregar-lhe.
Esticava a mão pequena e sapuda para o cesto do pão, que já se encontrava mole. Desmaiado. De susto. Tal era o pavor de ser torcido por aqueles dedos grossos e peludos, devorado por aquela fossa suja, chamada boca. Algumas migalhas, ainda sobreviventes, ficavam penduradas no triste guardanapo, que as tentava salvar e esconder nas suas curvas. Mas ele molhava a ponta dos dedos na manteiga e colhia-as. A cada uma delas. Sem falhar. Migalha a migalha.
Pacientemente.
Os peixes, perfilados na vitrina, eram os únicos que riam do espectáculo. Ele nunca comia peixe. Era difícil. Não gostava. E começavam com bocas debochadas para os nacos de vitela, as costeletas de novilho e o pernil de borrego. Que sentiam saudades do tempo em que tinham sido esfaqueados, cortados, desossados e talhados no matadouro de Cabo Ruivo. Aí, foram tratados com precisão, destreza e nobreza. No prato dele, eram rasgados sem habilidade, extraída a pele com brutidão e separados dos ossos com tamanha falta de emoção, que nem tempo tinham de se despedir do seu esqueleto. Em seguida, eram chupados com barulho schléck - schléck e envolvidos numa secreção aquosa, pouco transparente; a saliva. E juntavam-se finalmente, com as miseráveis batatas requentadas. Mais o arroz mole e lento. Tão peganhento era aquele arroz, que ficava colado à toalha de papel e aos punhos da camisa encardida de sexta-feira. Esmigalhado.
Boca aberta e livre de vergonhas, que mostrava uma bola de comida a ser devastada por lâminas galopantes e amarelas. Poucos dentes. E velhos. Tragava o vinho verde do copo baço e gordo. Respirava fundo. Depois do repasto, sacudia tudo com o miserável guardanapo, dorido dos nós e da alma impoluta, que já fora branca e imaculada. Quando o momento do clímax se aproximava, tremiam os pudins nas forminhas de alumínio. E não tremiam por ser flan, mas pelo seu fim que estava perto. Batiam os dentes de terror. Eram os que menos sofriam com o seu ritual da degustação, mas era a morte menos digna de todos aqueles alimentos. Caraças, Américo! Para que trazes sempre a colher? Não preciso disto, pá. Queres ver? Revirava os beiços como um cavalo, escancarava a bocarra, esticava a língua branca e peçonhenta e num ápice, sugava fraudulentamente o pudim inteiro. Inteirinho. De um só golpe.
Olhava com satisfação plena para o público embasbacado nas mesas, ao mesmo tempo que lhe escorria molho de caramelo pelos cantos da boca e lhe besuntava o pescoço por barbear, cheio de refegos que brilhavam da falta de limpeza. Então, chamava por aquela bebida porca que emparelhava com o café, à laia de cheirinho. E finalmente, a agonia para os alimentos daquele dia, só terminaria nesse instante. No momento, em que já estando todos eles, acamadinhos perto do estômago, olhavam para cima com olhinhos húmidos e aflitos à espera de ver escorrer com a velocidade de um tsunami, o bagaço incandescente e a gargalhar, que descia direito a eles para os queimar.
Morria também nessa altura, o guardanapo de pano, que caía no chão de mosaico e era pisado sem querer, enquanto ele sonora e orgulhosamente arrotava grosso.
Feliz.
28 comentários:
Que delicioso texto de terror... Foi por estas horas que Mary Shelley nos brindou com uma criatura decerto bem mais simpática que a tua...
porque, sinceramente, espero que apenas se trate de ficção da boa. se alguém assim existir, como é que eu durmo?
não existe, POIS NÃO?
A esta hora da noite, ainda por cima vinda de um bloque, cujo post é sobre a deliciosa carne mirandesa, faço um esforço e esqueço a imagem do senhor a lambuzar-se todo, o arroto sonoro mas feliz, e vou beber um copinho de leite, simples. A esta hora da noite não me sinto com apetites afrodisíacos!
Quero é dormir, que o cansaço aperta!
bjs
(adorei o texto :))
Rocket:
De certeza que existe. Para mal de todos os flan....
Lena:
Vai, filha vai. Bolachinha de água e sal.
acho que vou virar vegetariannnnnnna !!!!!!!!
olha ontem
esqueci de apagar o pc
e ele ficou aqui coitadinho
a espera do teu post toda a noite
até eu voltar da minha noite, repousada,
e do meu pequeno? almoço.
ao ler o post
tive pena dos dois croissants
que imaginei a boiar no café
bem quente
que acabei de beber!
estava numa
de beber o segundo café
antes de me ir vestir
mas não sei não .....
malvadaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa !
Estás a falar de pelo menos metade dos portugueses homens!
Gula... mto bem escrito beijinhos
Como uma foto tao atraente,(esse " jamon" con melon delicioso), pode levar-nos a um texto que de tao explicito nos tira o apetite???
Vaya mujer!!!
Fantástico.... valeu a pena perder o apetite para o almoço :)))))
Parabéns Patti.
Beijosssssssss
Vizinhança:
Eu prometo que venho cá à noite trazer umas águinhas com gás para todos.
'Tou ocupada, a ver se ainda salvo o guardanapo. Sniff, sniff, sniff.
Entretanto petisquem.....se o alarve deixar, claro!
Adorei! E esse final foi ótimo, tipicamente português kkkkkkkk.
PS: obrigada pelas dicas dos livros. A sombra do vento vai ser a primeira aquisição.
beijoooo
blhecccccccccccccc, que nojeiraaaaaaaaa grotescaaaaaaaaa
ahahahahahahha, que descrição patti, tal qual a maior parte dos homens.
O pior é que com as descrições que fazes, parece que o dito está mesmo à minha frente a deliciar-se com a carne ahahahah
Beijo
Bem, primeiro há que digerir muito bem este texto e, caso me dê voltas ao estômago, prepara-se já um Alka-Seltzer.
Pronto, está lido e muito bem escrito, embora não suficiente para que perde-se o apetite.
Ora deixa cá ver o menú...
Uhgg!!..a está hora e ainda por cima eu de barriguita vazia, quase me tiras o apetite...
Prefiro comentar a tua foto...muito gira sim senhor!!
já trás um cheirinho a férias e tudo..
beijinho..
uma prosa descritiva, bem a meu gosto...
acho que o pski continua a ressonar...coitado...deve ter mesmo muito trabalho no gabinete!!!
Espera um bocadinho que eu já venho para ler esta ode. Caraças, mas o quê é isso?
A conversa lá continua.
Ó Patti, estiveste a comer junto ao Shrek? hehehe
beijos em tarde de SOL.
Ah, esta nova foto do link está um charme!Já é prenúncio do Verão???? O biquini é de lacinho lateral??hehehe
Ora, ora.
Guardanapo de pano e toalhas de papel, não me parece que condigam muito, mas….
A falta de etiqueta começa aí, ou será que não?
Bem, deixando-me de divagações, aqui se encontra um excelente texto com crítica implícita às regras de boa educação à mesa, mas a meu ver toca noutros aspectos igualmente importantes, como o uso excessivo de carnes vermelhas e a consequente morte a morte dos animais. Associo também o uso do guardanapo de pano à protecção do meio ambiente. Menos papel gasto, menos arvores cortadas.
Não sei se queria chamar a atenção sobre todos esses aspectos, mas foi desta forma que interpretei o texto.
))))))
Há homens bem + delicados que a maioria algumas mulheres... o que se passa? todos temos defeitos... a gula é feio em ambos os sexos... e tb já vi senhoras assim... e atenção que não estou a tomar partido de ninguém... tanto + que este post está tão bem escrito que nos faz fiacr assim a ver as cenas... mas como ode à gastronomia afrodisíaca é que nem estou a ver...
Magnífico texto, cheio de humor e que me deu a sensação de poder tocar - que asco! - na personagem... Uma cena de filme neo-realista italiano.
Menina, que isso?????...
Fala sério....existe???? Assim nunca vi, graças aos bons ventos....credo - rsrsrsrs
Bjuss de carinho
Credo...agora tudo o que me disseste ontem faz sentido :D
Lindooo este texto para quem acabou de jantar um bacalhau à Brás. Não sei se será insemsibilidade minha mas confesso que não senti pena do bacalhau...lol
E agora vou-me pois tenho de ver se esta tudo bem com o nosso amigo Paulofski, se ele já despertou ou não (se bem que dada a hora até o podemos deixar a dormir durante a noite :P)
Beijinhos
@nn@:
O meu protagonista não gosta de croissants. Estão safos por hoje.
Gi:
Ainda são alguns, mas acho que cada vez menos. Diz-me tu.
Claudia:
Estas enfadada tia?
Olá:
Assim é que é. Valente.
Chris:
O português que vocês conhecem já não é o Manel da padaria, há pelo menos 40 anos.
Infelizmente não é tipicamente português. Estive no Brasil e vi maneiras à mesa bem mais tristes. Em todo o lado, enfim.
Coragem:
Até o pernil falou contigo não foi?
Paulofski:
Olha outro valente! E depois desmaiaste lá no gabinete, não foi?
De dentro...:
Que estômago tão fraco...Tu vê lá.
João:
Obrigada. Bem vindo.
Pitanga:
Tal qual uma Fiona.
D. Antónia:
Que grandes divagações...
Os guardanapos de pano, têm 'donos' fixos, até nas tascas. Por causa da gordura que escorrega. É o chamado babete.
F@:
Exacerbações minhas.
Fada:
Conseguiste tocar? E eu que achava que não tinha lá ficado nada!
Se alguém ainda vier, pode servir-se das frizes de limão e dos palitos.
Boa noite.
Mir:
Sorte a tua.
Ka:
Não vomitaste, é o que interessa.
Acho que o menino paulofski anda a fazer-nos caretas!
Pois eu vim e já só havia os palitos.
Ainda bem que acabei de comer um iogurte de soja e de beber um chá.
Mas não era amerelinho com ar de xixi de gato:)))
Que criatura mais viscosa, o teu personagem.
Sabes o que o teu filme me lembrou?
O único filme que até hoje, não consegui ver até ao fim: La grande bouffe!
Muito bem escrito.
Parabéns e veludinhos azuis
Escreves muito bem.
Beijos.
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