terça-feira, 28 de outubro de 2008

broken wings - #10



Vivia-se bem no planeta Jubilo. Tão perto do céu, como da terra. Os mortais usufruíam de uma existência mágica, com os seus deuses sempre por perto.

Os incêndios eram extintos com sopros vindos de cima, as maleitas desfeitas com sorrisos de deusas douradas, os desgostos do coração eram substituídos por novo amor, pela mão de um deus encantado, as zangas esquecidas com olhares reprovadores de deuses de barba longa e branca, o nascimento presenciado por um deus sábio, que atribuía dons e a morte era conduzida para o céu, ao colo de deuses jovens e renovadores. As crianças-deuses, andavam na escola do paraíso, onde aprendiam a arte de socorrer a mágoa nos animais.

Os humanos tinham características especiais e uma delas, única, herdada pelos pais no dia do nascimento. Visão extra, pisar sobre a água, ouvir o pensamento, falar a língua dos animais e um sem fim de capacidades muito especiais.

Missi podia voar como a mãe. Possuía asas gigantes de penas longas e brilhantes que quase lhe tocavam nos pés, oferecidas por um deus sábio que testemunhou o seu nascimento e que se esmerou na beleza e na imensidão daquelas asas.

Missi quase se esquecia que podia andar e voava para todo o sítio, longe e perto. Em criança imitava os voos dos pardais do jardim, mais tarde o das pombas nos telhados e finalmente os voos altos das águias e falcões.

Disparava rumo ao nada e sumia-se no azul. Competia com as aves de rapina, fazia corridas com as andorinhas, os patos-reais e os flamingos quando das suas migrações e planava tão bem como o grande pássaro, o condor.

Conheceu-o quando chocaram no céu, numa altura em que ela, aproveitando brisas de calor que a sustentavam no ar como uma cama de rede, pairava de olhos fechados.

Perderam o equilíbrio, desarranjaram as asas e foi uma nuvem de penas pelo ar. Atrapalhados, ajudaram-se um ao outro, pousaram na montanha e só nessa altura ela reparou quem ele era. Um dos deuses do planeta Jubilo

Tinha ficado magoado na asa direita, mas a ferida curou-se lentamente. Imunidades de quem vinha do céu. Mas ficou a cicatriz dorida daquele embate.

Com um sopro, afastou-lhe algumas penas do cabelo e disse o nome, sou o Don.

Deste encontro resultaram afinidades singulares, exclusivas e perpétuas. Nascia neles o supremo sentimento. Tinham a paixão do voo e juntos desidratavam-se entre os fenómenos de calor e luz, no meio da atmosfera rarefeita do éter.

Missi desconhecia, mas Don sabia que uma relação emocional entre deuses e mortais era proibida, pois um dos dois arriscava-se a perder o seu dom. Mas os deuses ali não eram perfeitos e ele deixou-se ir com Missi ao sabor das brisas e ventos.

Combinavam encontros nos ninhos abandonados dos pássaros vadios, no cimo das nuvens mais pesadas ou no extremo dos arco-íris.

Almas gémeas nas nortadas, nos suestes e nas monções. Respiravam correntes de ar e ventos leste e abraçavam-se ao sabor do barlavento. Nunca souberam o que era um furacão ou um tornado, preferiram ventanias e redemoinhos mais ligeiros. Mas o ciclone deu-se e os deuses descobriram a sua ligação.

Um dia Missi caiu e as asas pararam, não lhe obedeceram, estancaram de repente e embateu com toda a força num enorme raio de sol que a destroçou para sempre. Sem saber como, entendeu tudo nos olhos de Don, quando ele a segurou e impediu que se extinguisse do desgosto. O sol zangou-se e num golpe anoiteceu o dia mais cedo que o costume, o vento que com ela convivia desde as primeiras asas, expeliu fortes rabanadas que gritaram de sofrimento e as nuvens autocarregaram-se de humidade cinzenta, para chorarem lágrimas grossas de tristeza, imitando o dilúvio do primeiro Livro.

Leva as minhas assas partidas e trata-me delas, senão nunca mais conseguirei voar. Não consigo pensar, não consigo ser, não consigo viver. E ele assim fez. Dobrou-as com jeito e envolveu-as em si próprio, recolheu ainda algumas penas que flutuavam à roda deles e partiu rumo ao céu, para mais uma missão etérea.

O céu estava trancado. Portas, janelas e qualquer frecha. Era o castigo. Depois do concílio, fora Missi a escolhida por decreto ficando privada do dom de voar. Não por pensarem ser ela a maior responsável da tragédia, antes pelo contrário, mas Dom sim. E a dor dela seria o seu castigo.

Os deuses nunca são misericordiosos com as leis que impõem. Não abrem excepções, são duros e intransigentes. Escrevem leis para a alma em livros grossos, como se o que nos nasce de dentro tivesse nome e pudesse ser julgado assim, levianamente, por árbitros que só entendem de estabelecer sistemas de regras reguladoras e imutáveis.

Com Eva aconteceu o mesmo no planeta do lado, só que o homem que a deveria ter amparado era fraco e não foi escolhido por ela, impuseram-no. Não tinha a mesma força do homem de Missi, que a salvou, que não deixou que o erro da sua fraqueza fosse fatal para ela. Missi nunca foi apontada, excluída e diminuída e nunca acartou no seu nome e no seu sexo, o peso de uma má reputação de séculos e séculos. Como Eva.

“Leva as minhas asas partidas e trata-me delas”, ele tratou e viveram perpetuamente à bolina.

Don carrega-a nos braços, ao colo, nas costas ou empresta-lhe uma asa. A asa que ele feriu quando se viram pela primeira vez. É uma asa sofrida que entende a dor de Missi, quando ela agora voa, lesa e mutilada.

É deles que nascem cúpidos. Querubins gordos, que na ponta das flechas cheias de amor que disparam contra nós, herdam a salvação dos pais e guardam o caminho da Árvore da Vida.

18 comentários:

SONY disse...

Olá Patti,

Não te tenho lido, tenho espreitado e por isso não tenho comentado...assim como vim aqui...o post é grande tal como o bonito que nos deve transmitir como tudo o que escreves, mas hoje também vim só deixar um beijo,
sony

Anónimo disse...

Tudo isso porque naquele tempo não havia super-cola 3.
Essa da Eva está muito mal contada. O CR que já contou a verdadeira história da maçã...

E por aqui me vou, até Jubilo.

De dentro pra fora disse...

Há amores assim,que se julgariam impossiveis mas a força do amor é bem maior, quero crêr que com amor tudo se consegue:)

Gi disse...

Esta história faz-me lembrar as histórias que a minha Mãe inventava para mim e para o meu irmão nas nossas longas viagesn, de carro, em Angola.
É este o meu imaginário. ;)
Obrigada.

Vera disse...

Lindo Patti...e a imagem final...que querido! Adorei este texto :-)
Beijos cheios de asas esvoaçantes de querubins rechonchudos!
E a praia? Sim ou não?

Si disse...

Patti,
Esta será, concerteza, uma DAS histórias.

Não preciso dizer mais nada, pois não??

Prendinhas

Teresa Durães disse...

belo mergulhar na fantasia

Ka disse...

E com esta hitória tocamos num pedacinho de céu!


A música está muitissimo bem escolhida como sempre :)

Beijos

paulofski disse...

Dava um jeitaço ter essa visão extra, pisar sobre a água, ouvir o pensamento, falar a língua dos animais e um sem fim de capacidades muito especiais, ai se dava!

Bonita narração onde o amor e a paixão voam juntas.

Miepeee disse...

Nada melhor que deixarmo-nos levar pela fantasia e levar com uma flechada do cupido :)

Álex disse...

a última foto é muito bonita, ternurenta e o texto encantador

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Patti,
Eva nunca poderia ter o destino invejável de Missi, porque foi uma segunda escolha, e de emergência, roubada numa costela. A Mulher originária de Adão era Lilith, creio que ão preciso de especificar mais...
Beijinho

Patti disse...

Paulo:
E bem fez a Lilith que se pos a andar e mesmo assim não se livrou do rótulo de demónio.

Anónimo disse...

Não gostei.

Quer dizer que a culpa da Eva ter sido repudiada ao longo deste tempo todo foi por o Adão não a ter amparado como fez o Don com a Missi? Então, quem mandou à Eva ter comido a maçã, armada em garganeira, e não esquecer que também foi contra as instruções do criador.

E depois falta saber ainda muita coisa acerca de Jubilo. Não sei se será aquele paraíso que nos estás aqui a fazer crer. Cá para mim estás só a escolher as partes da tua imaginação que mais te convém.

E mais, se os deuses não castigaram o homem do planeta do lado, é porque se calhar o homem não era assim tão culpado. Não te esqueças e cito-te, «Os Deuses nunca são misericordiosos com as leis que impõem. Não abrem excepções, são duros e intransigentes. (...)», assim, e vou ainda mais longe, essa menina Eva ainda devia ter mais culpas que nem sequer vêm nas escrituras que nos foram dadas a conhecer, e por conseguinte não nem nunca as saberemos.

:|

:)

beijoca

BlueVelvet disse...

O amor devia dar-nos asas sempre, e não quebrá-las.
Mas a metáfora está linda.

Anónimo disse...

Uma história FANTÁSTICA... Lá vai ela fabricando fantasias! o jeito que a moça tem! LIVRO, LIVRO, LIVRO!!!

mariam [Maria Martins] disse...

Oh! Patti,
quanta imaginação!
Tenho estado a ler por aí abaixo...

para quando um livrinho??!!!! ein!
de crónicas, porque não?! adoro o género.

sorrisos :)

Filoxera disse...

Que narração maravilhosa! Que imaginação prodigiosa!
Parabéns, novamente!