Tinha mãos feitas de sonhos. Herdadas da mãe que fora a parteira mais solicitada da zona. Nunca perdera um bebé, nem o da vaca do Sr. Francisco quando o veterinário não pode lá ir.
Mas as mãos dela nasceram para outro fim, tão nobre como o de dar oportunidade à vida como fazia a mãe. Desenhava futuros felizes.
No meio da vida difícil e pobre do bairro, Purple tinha sempre uma folha colorida do seu bloco de desenho para oferecer a alguém. Eram desenhos de esperança e alento e sempre sem a cor preta. Nunca coloria nada a preto. Na caixa dos lápis, no estojo dos guaches, na palete de aguarelas, o preto estava sempre novo. Intocável.
Alguns pretos até secavam e morriam.
Uma vez, regressava a Sra. Joana exausta das horas extra que fazia a dias e já Purple a esperava com uma folha na mão, preenchida com aviões, malas de viagem, sacos brilhantes do freeshop e ursos de peluche. Tu não me digas que o meu filho vai voltar? E trás as minhas netas? E já não sabia se havia de rir ou chorar, ou gritar, ou correr para casa, ou ligar o telemóvel ou …
Noutro dia foi o Jonas, que quando se preparava para sair de casa com a prancha de surf às costas, a viu sentada no passeio em frente à porta dele com o bloco de cavalinho nos joelhos encolhidos e a dar os últimos retoques na colunata coríntia do Templo de Diana. Évora? Évora, Purple? Eu entrei em Évora? Largou a prancha no chão e abraçou-a até sempre.
Os recém-casados que moravam ao lado dela, também foram presenteados com um dos seus desenhos. Folha ocupada de cálculos matemáticos de todas as cores, que saltitavam entre percentagens e gráficos de probabilidades até 2038. Zé! Oh Zé, anda cá ver isto! Olha o que a Purple nos trouxe. O banco vai conceder-nos o empréstimo para a casa!
Fora este o dom com que a vida a dotara. Pintar a cores o futuro dos outros.
Frequentava pois está claro, Belas Artes e era a aluna preferida do velho professor Gil na disciplina de Composição-Pintura. O traço inato que saia das suas mãos sem qualquer pretensão ou inquietação com o seu futuro, comoviam-no ao ponto de ter emoldurado alguns dos seus desenhos e tê-los espalhado pela sua casa. Ele já tinha ouvido falar da predestinação dos desenhos, mas a grande admiração começou quando um dia Purple lhe ofereceu uma folha desenhada com bigodes compridos e finos, todos sujos de leite. Apareceu o Sebastião, Purple? Ai que susto me pregou aquele gato fujão! Ficaram amigos.
Como não sabia desenhar feio, triste e mau, nada pintou no seu bloco quando a doença espreitou pelo professor Gil adentro, gostou do que viu, entrou e ai se instalou. Para crescer.
Mas Purple sentiu-lhe o ar cansado, os olhos tristes, a pele baça e a voz baixa. Sacava do bloco irritada, olhava para aquelas folhas brancas e nada. Distribuía os lápis à sua volta, espremia bisnagas de tinta, lavava pincéis de pelo de marta, desenroscava boiões de tinta, raspava lápis de cera, aguava as suas aguarelas e nada de nada!
Tornou-se impossível saber o que se passava com o professor e não conseguia entender o seu decair e a sua fraqueza. Também não soube, que naquela segunda-feira ele não ia estar pela primeira vez, desde que ensinava a disciplina de Composição-Pintura. A faculdade informou os alunos que o professor Gil se encontrava de baixa para fazer exames e provavelmente iria ser sujeito a uma cirurgia ao coração. Delicada, mas decisiva. Era então a doença, a razão das suas folhas continuarem vazias. O preto nunca lhe saía nos desenhos de futuros promissores e dos outros futuros ela não sabia desenhar.
Numa enorme tristeza continuou a desenhar a felicidade de todos, só porque lhe era inato. Quando nesse dia regressou a casa, fez festas ao gato bebé que comia os restos do lixo e deixou-lhe pintado no passeio com batom, uma criança sorridente de braços estendidos. Passou por uma jovem que esperava à porta do cinema e deu-lhe para a mão uma rosa amarela, desenhada no verso do bilhete do autocarro. Com o cor-de-rosa e o azul claro, pintou duas chuchas enormes, que ofereceu à empregada do talho. Pegou ainda nas cores das férias de Verão e emoldurou uma enorme folha de papel desenhada por si, cheia de um verde mar, areia fina e brilhante e presenteou os pais no jantar de comemoração de quarenta anos de casados. E para o professor Gil, passaram-se dias de agonia em que nada pintava.
Até que chegou o dia em que o bloco de cavalinho lhe implorou que o abrisse, os lápis trocavam de lugar na caixa num enorme frenesim, os guaches auto espremiam-se cuspindo cores sem direcção certa, as aguarelas transformaram-se numa sopa policromática e os lápis de cera derreteram-se de excitação.
Mas o que era aquilo? Nunca as suas cores se tinham portado daquela forma alucinada. E o papel então? O papel gritava pelo nome dela, Purple, Purple! Tens de nos entender!
E ela entendeu. Abriu a janela para o rio e as cores saíram disparadas rumo ao céu, uniram-se em arco e falaram com o pai-íris. Conversaram. E mais calmas, ouviram conselhos sobre tonalidades, sombras, texturas, luz e reflexos, matizes e gradações, desde as cores primárias às terciárias. Regressaram para a caixa, Purple pegou nelas e saiu desembestada para a rua em direcção ao hospital.
Oh Purple, tanto que esperei para que me trouxesses uma das tuas pinturas com futuro. Olhou para ele com uma enorme alegria e com cuidado colocou-lhe em cima as folhas brancas e vazias todas desirmanadas, a caixa dos lápis, as bisnagas de guaches, os frascos e tinta, o estojo das aguarelas e as lascas dos lápis de cera.
Vim desenhar para o pé de si.
Não conseguiste não foi? Não há esperança para mim?
Nada disso, professor.
A mão dela nunca deslizava para o feio e o disforme e muito menos para o lúgubre ou o sombrio.
Não sei pintar o que ali dentro se vai passar. Não conheço, não sei do que se trata e nunca lidei com o preto da vida. Mas os seus médicos sim, professor. Nasceram com o dom de correr com ele para fora da nossa existência e com capacidade de ver para além da bacidez da peçonha. As minhas cores estão tão aflitas com o poder do preto, que quase ficaram sem tom de tanto me implorarem para que as trouxesse até aqui. As folhas do bloco soltaram-se da lombada, tal era a excitação de quererem acompanhar as cores até si. Quase que não me deixaram entregar uma folha ao motorista do autocarro, com o desenho da fábrica de portões abertos e cadeados no chão, onde trabalha a mulher dele.
Elas acham que juntas vão vencer o preto. Nunca ele me toldou tanto a visão, como neste seu futuro, que nem sequer me deixa alcançar a simples matiz de uma qualquer cor. Mas não se preocupe, porque sinto que vou conseguir desenhar para si.
No final.
A equipa médica aproximou-se e imediatamente imagens de luz chegaram às mãos de Purple com tanta veemência, que receou não ter trazido consigo cores suficientes e papel que chegasse, para libertar o desenho mais bonito que jamais algum dia criara. Mas o pai-irís brilhava por toda a cidade, mais intensamente que nunca.
Espere um momento Dr., trouxe de casa um desenho para si. E de dentro da sua mala de pintura, retirou um maço sem fim de folhas soltas, que estendeu ao chefe da equipa médica. Ele desfolhou-as uma a uma e apreciou agradecido, aquela mancha de cor. Distribuiu cada uma delas por toda a sua equipa, que partiu para a sala de operações seguida pela maca do professor Gil, que a tudo assistiu em silêncio de entendido.
E cada um deles levou consigo, dobrado e guardado no bolso esquerdo da bata junto ao coração, um desenho de Purple, inundado de sorrisos perfeitos com todas as cores do arco-íris.
24 comentários:
Porque escreves tão bem? Emprestas-me os lápis de cor?
Este tipo de textos não se comentam, sentem-se.
Brilhante e comovente.
É isso mesmo Patti; quando vemos o arco-íris, seja em que lugar for, a sensação que se tem é que o Mundo é um sítio perfeito, perfeito.
Se tu visses o ar feliz das pessoas enquanto le se desenhava no Céu, os olhares cúmplices, o Babel de línguas em excitação, os gestos ...
E o arco-íris, sorrindo, ia avançando até fazer um arco completo, abençoando a Purple e toda a gente que era alcançada por este toque de Midas.
Lindíssimo o teu texto.
Simplesmente Maravilhoso!
tenho lágrimas
as cores que transformam a nossa vida
Dás-me um desenho dos teus?
:))))
Beijinhos
Há pessoas com o dom de colorir a vida dos outros. Como Purple, como tu!
Obrigada pelo colorido comovente do teu texto:))
Primeiro (mas menos importante), etse post faz-me lembrar o que publiquei há dias, do homem sisudo.
Segundo (mas o que realmente interessa): és uma escritora brilhante. Não ficas atrás de grandes autores consagrados e fizeste-me chorar a turbulência de emoções guardadas cá dentro.
Parabéns!
Ontem à noite estive aqui. Li e não consegui comentar. Voltei agora e continuo a sentir essa incapacidade. Será porque me faltam os lápis de cor?
Texto espectacular como arco-íris…
E as cores gostam de sair dos tubos e se espalhar nos dedos e em folhas brancas … na imaginação … se colar aos pelos de pincel… nessa ânsia de dar alegria e “cor”…
A beleza do arco-íris é maior quando o céu escuro e nuvens com gotas de chuva… se observamos um local ainda com brilho do sol… ou dum local com mta água como a praia ou em cascatas…
Essa cor e beleza do teu conto … o espectro do sol que brilha no interior do coração … a ausência de preto como alívio do sofrimento …
Dizem algumas lendas que no local onde nasce o arco-íris há imensos tesouros escondidos…
Beijinhos das nuvens
Hoje tb vou trabalhar com o arco-íris junto ao coração. Obrigada, Patti!
Hoje deu-nos a todos um arco-íris para guardar junto ao coração .
Sabe tão bem ...
Bem-aja
Gostei muito, Patti. Há quem saiba ler nas cores, que espontaneamente se escolhem, traços de personalidade e estados de espírito. Mas também talvez pudessem ler-se premonições... tal como nos sonhos... :-)
As coisas mais bonitas que a vida tem são sempre definidas pelas atitudes mais simples, mais verdadeiras, mais inocentes, tão inocentes como o coração que guiava o lápis da Purple.
Gostei. Muito.
ahh Patti, vc me lembra que adoro colorir com meus lápis de cor!!!
mas me diz uma coisa, o que significa "bacidez da peconha"?
Nina:
Bacidez=sem brilho
Peçonha: veneno, maldade e neste caso a doença do professor.
a simplicidade fica tão bem... uma história simples e cheia de emoções. uma vida feita de cor:)adorei! aliás, acho mesmo que é impossível não gostar das suas histórias!
Patti, adorei este texto cheio de força e energia.Hoje de manha entrei para ver o teu post e começei a ler...tinha mto trabalho e o melhor que fiz foi deixar para o ler tranquila, com tempo e a sentir cada palavra tua como fiz agora. EXCELENTE ! AMEI
É a terceira vez que aqui venho hoje, é aterceira vez que leio o texto.Obrigado por mais este texto a cores!
Que lindo, Patti! Vejo que a moça com o chapéu de palha com flores veio outra vez.
beijos
Não é facil comentar o texto. A emoção é enorme, sente-se à flor da pele. Marvilhoso.
Parabens
Vizinhança:
Obrigada a todos pela cor das vossas palavras. Fico sempre sem graça...
Ontem passei aqui ,mas como vi que era um 'daqueles' textos que aqui estava resolvi voltar com mais calma para poder ler como gosto...com gosto :)
LInda a tua historia, com muitas cores como eu gosto :))
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