Exercício: Um velho está em pé numa paragem de autocarro, com uma bengala na mão e um folheto na outra. O dia é frio, chuvoso e triste.
(Narrador na 3ª pessoa)
Há uns dias que reparo nele. Olhos entusiasmados - que desejo sinceramente, já tenham tido um destino feminino de rosto meigo. Hoje procuram fixar-se num ponto, num sentido, em algo que não surge. E pela tristeza que pariu este dia, desconfio que não surgirá.
Vem lá do fundo da minha rua, alheio aos primeiros chuviscos, num passo leve mas pesado, como se sentisse profundo o resto do tempo que ainda lhe falta existir. Todos os dias traz a bengala consigo - pega de marfim, cabeça-de-leão - mas não se apoia nela; afasta os empecilhos do caminho com o extremo pontiagudo de aço frio, desviando com a destreza de um profissional de hóquei, todos os estorvos e obstáculos que o impeçam de chegar à baliza: aquela vulgar paragem do autocarro. Igual a tantas outras.
Eu, do outro lado do passeio, sentada na esplanada observo-o no cumprimento de um bom-dia a todos, de sorriso na cara.
Tenho-o como educado, pois repete teimosamente o ritual daquela saudação - em desuso - e parece não se importar com a ausência de resposta. Nem o cão vadio lhe sacode a cauda; só pensa em dormir o pobre animal, exausto da procura da noite: vasculhar no lixo dos outros, o luxo de uma refeição decente.
O meu velho, aconchega a ruça flanela axadrezada ao pescoço sulcado de passado e esfrega as mãos, termometrando o frio que já vem chegando mais áspero, nestes primeiros bateres de outono. Leva a mão ao bolso do casaco e ...
E depois vem aquela parte que me intriga, que me faz esperar pela sua chegada estes dias, que me espevita a curiosidade; que quase me envergonha, a mim mais a esta minha observância invasiva. Estranho. Não sou nada de meter o nariz na vida dos outros. Acho que simplesmente só gosto de pessoas, de reparar no que os outros não vêem, de imaginar o que há para além do óbvio. Do pormenor. Até a palavra pormenor é bonita: p-o-r-m-e-n-o-r.
Retira o folheto do fundo do forro. A folha do costume; gasta, vincada nas dobras brancas, já sem tinta. Afina o aparelho na orelha. Lê e relê aquele papel. Vira-o e revira-o. Cheira, afaga, sente-o junto do ouvido.
Não distingo nem letras, nem figuras, muito menos o assunto, mas é de certeza o mesmo folheto que lhe tem despertado a atenção todas as manhãs. Também não será hoje que descubro do que se trata, mas aquele seu aproximar da folha do ouvido para lhe saber o som, mexeu comigo.
É então que decido presumir e ponho-me a fantasiar!
Trata-se de uma pauta de música. Está resolvido. Com o seu peculiar traçado, desenhado com bailadores símbolos pretos, de perninhas, rabinhos e cabecinhas ágeis pintadas nos extremos, que executando passos de dança, cantam uma toada alegre. Uma marcha musical com mais de cento e cinquenta anos. E eis que o meu velho ergue a bengala como uma batuta, iniciando a direcção de uma orquestra obtida nos sons da manhã.
Coloca-se na frente da paragem de autocarro e vai por ali afora, de bastão com cabo de marfim no ar, regendo a parada na execução da sua peça musical. Persegue-o de imediato o rafeiro, animado com aquele sopro de vida, soltando latidos num ritmo cadenciado, e logo dobra a esquina juntando-se a eles, um jovem de iPod, que desperto do marasmo habitual, marca o compasso num puxa e escorrega, com o auxílio dos jeans descaídos, atrás de si surge a secretária de salto agulha, batucando a biqueira sensual no empedrado e abanando os ombros deliciada, depois vem de lá a cabeleireira do salão Peruca Jovem, tesourando o ar com um tac-tac alegre e sonorizado, aparece a mulher da limpeza do armazém dos congelados, empunhando a esfregona e dedilhando nas suas cordas brancas de franjas húmidas, notas de pura sintonia, e os carros apitam, e a menina da farda cinzenta que vai para o colégio dança, as árvores ávidas de pássaros calam-se e escutam-no e até eu, embasbacada com aquela marcha de comemoração, tilinto a colher na chávena do meu café, provocando acústica no copo de água e rumores na lona do guarda-sol, que ainda há instantes, me protegia do ruído amotinado da rua. Do silêncio ensurdecedor da vida.
Será que é música, o que se passa na cabeça deste velho, Si?
15 comentários:
Tu tem lá calma com a sinfonia a esta hora da noite. Deixa estar o velho a ouvir o papel e por favor tem dó dele, já lhe podias ter dito que não adianta esperar na paragem, aquela linha de autocarro faz anos que foi desactivada. Porque não o convidas para se sentar um pouco à tua beira? Assim como assim os dois não batem bem e aí sim a música era capaz de ser outra coisa.
" Do silêncio ensurdecedor da vida"
Aqui está uma frase que resume muitas vidas .Para mim que hoje logo ao acordar me lembrei ,numa angustia todos os anos repetida ,que falta pouco para o natal , deu origem a um diluvio
Esperando o seguimento e resposta da Si .
Este blogue anda muito colaboracionista. Ai, ai! :)
Quanto ao senhor ... será mais um louco de Lisporto?
Comento depois de ter lido este post e o da vizinha afilhada. Como por lá disse,presumo que a terceira pessoa que está a observar seja a drª Lurdes, uma sádica que ofereceu ao velho um folheto do Viagra e depois foi para o café gozar a paisagem. Partitura de música? Não acredito. É a drª Lurdes a fazer-se distraída.
É música sim, Patti, a música mais trauteada no mundo, certamente! ;)))
Um cena gira, Patti, pela adesão do resto do mundo a essa música imaginária. Há, de certeza, na cabeça de muita gente que por aí anda, música a tocar. Na minha, é uma das coisas que me faz mexer. Gosto imenso da sua versão dos acontecimentos. A Si fez uma opção igualmente interessante, dentro do género ousado. ;-D
Seria um folheto com frente e verso..., para a sua velhice não fosse uma marcha funebre dos prazeres carnais da vida....
bj boa semana
.. e até eu, siderada com aquilo que escreves e eu vejo. Mas vejo mesmo.
:) Gostei. Imenso.
E pronto, lá estava eu a fazer o filme na minha cabeça que até já tocava pandeireta ao ritmo da bengala batuqueira. Agora vou ler o que a simpattica vizinha tem a contar.
Abençoada imaginação, Patti! Que me levou de arrasto, ouvindo a banda passar. Assim se re-inventa a vida...
Este texto maravilhoso, com a marcha de fundo, são uma autêntica delícia para os meus sentidos visual e auditivo.
Adorei!!!!!!
E num passe de magica pôs todo o mundo a sorrir para ele...gostei...
Gostei de conhecer o cavalheiro. Simpático, por certo, e bom conversador. Sente-se nas entrelinhas.
Lindo...mas eu, numa visão bem mais pessimista e muito menos poética, penso que talvez o papel seja para lembrar-lhe o caminho de volta para a casa...afinal a falta de memória a curto prazo é um dos sintomas do Mal de Alzheimer...
Esta prática da escrita em paralelo sobre um mesmo tema está demais!
E a música!
Parabéns, está-se bem aqui, como já se espera.
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