quarta-feira, 5 de novembro de 2008

às vezes só basta ser feliz - # 11


Oh valha-me Deus, gritou Priscila Vanessa, atirando com o telefone e saiu a correr rua abaixo, direitinha à casa da vizinha fina lá do bairro, onde a mãe, D. Vina fazia umas horas. Ai rapariga, que susto me pregaste. ‘Qué lá esses guinchos, tu ‘tá-me calada filha que a D. Alzira não gosta nade de excessos, como ela diz.
Era impossível não gritar, tinha conseguido a vaga de ajudante para o cabeleireiro no shopping “Estrela da Noite” e não era coisa pouca, não senhora! Ali varriam-se cabelos das senhoras ‘como deve de ser’ lá da zona, daquelas madames muito louras que se gabavam dos maridos trabalharem e elas não, enfeitavam-se vitrinas com boiões gordos, com letras douradas de produtos estrangeiros de nomes difíceis, cheios de ‘k’s’, ‘y’s’ e ‘w’s’, podia-se pintar os olhos com aquelas sombras lindas, de azuis e verdes brilhantes, como via nas balconistas das outras lojas do shopping, trocavam-se opiniões animadas sobre os desgraçadinhos e as fofocas cor-de-rosa do programa da D. Fátima e ainda tinha hipótese de ganhar uma comissãozita, se aprendesse a lavar cabeças como a Beta.
Ai Priscila, que alegria me dás e vês filha que eu tinha razão quando te dizia para fazeres o 9º ano? Que surpresa vai ter o teu pai mal chegar a casa e vir que temos iscas com elas para o jantar. Vai perceber logo que estamos a festejar e quando vir o pudim de ovos, então? E não é que a D. Vina acertou. O senhor Rocha até chorou de alívio ao ver a filha encaminhada na vida, agora só lhe faltava arranjar um rapaz jeitoso, trabalhador e sério, para ele poder partir em paz.
Priscila Vanessa teve logo sucesso junta da patroa. Era bem mandada e fazia o que lhe pediam, mas despertou inveja na Ivete manicura, na Olga da caixa e na tal da Beta lava cabeças. E porquê? Porque Priscila Vanessa era gira que se farta e pronto! Tinha assim uma carinha de anjo, redonda com duas saudáveis rosáceas, olhos pestanudos e azuis, boquinha de rosa e narizito arrebitado, enfeitado com algumas sardas. E mais, era dotada de uma cabeleira selvagem, loura e farta, até ao meio das costas, muito bem tratada com muito amor pela D. Vina, que lhe aparava as pontas uma vez por ano, mesmo antes de irem a banhos para a Fonte da Telha em Agosto.
Cabeleira cobiçada por todas as invejosas do shopping “Estrela da Noite”; balconistas modernas, engomadeira da 5 a Sec, ucranianas do minimercado, a Dra. da empresa de contabilidade e de venda de impressos para as finanças, a brasileira da boutique ‘Tininha’, a dona da capelista e até pela cigana Almerinda, que vendia pólos Sácoste à entrada do shopping.
Priscila Vanessa, rapariga muito bem criada pela mãe Vina, mulher-a-dias com muita honra e pelo pai Rocha, pintor da construção civil, com muito orgulho, nem se apercebia dos sentimentos mesquinhos que despertava nas outras, nem achou estranho que a Beta nunca tivesse tempo para lhe ensinar a lavar cabeças, nem desconfiou quando a vassoura desapareceu uma manhã inteira, ou que os boiões da vitrina aparecessem todos desordenados. Estava feliz com aquele emprego promissor e isso bastava-lhe e mal sabia que o melhor ainda estava para chegar à sua vida, para a modificar para sempre.
Já tinha ouvido várias vezes, as colegas falarem do Joca da transportadora "Não Esperes Muito”, mas ainda não o conhecia. Mal o rapaz punha o pé fora da carrinha das entregas, era um corrupio e uma excitação de gritinhos em todas as lojas daquele shopping, nunca visto em nenhuma outra altura do dia.

Bom dia Joca, olá Joca, como vais Joca, estás bom Joca, trazes alguma coisa para mim Joca, hoje vens carregado Joca, estás atrasado Joca… ele de olhos no chão só devolvia o bom dia. Não era de todo rapaz dado a confianças.
Foi como se o fogo de artifício anual da colectividade lá do bairro, tivesse explodido sem aviso. Quando Joca lhe passou a caixa dos cremes de abacate contra as rugas para as mãos e os seus olhares se cruzaram, o coração de Priscila Vanessa subiu-lhe às faces, os frascos de champôs tremeram na prateleira, a caldeira pifou e as clientes atiraram berros com a água gelada, a Beta louca da vida e possuída pela raiva, arrancou cabelos à madame loura que lavava a cabeça, a manicura apanhou uma cutícula extra à cliente ficando sem gorjeta e as luzes das invejosas do shopping fundiram todinhas de uma vez.

Joca, até então rapaz seguro de si e nada dado a grandes conversas com o mulherio assanhado que o abordava constantemente, ficou perdido naqueles olhos azuis, apaixonado por aquela carinha laroca e deslumbrado com o louro-dourado, mais bonito que tinha visto na vida.
Amou desde logo o nome que ela nervosamente assinou no recibo e jurou a si mesmo que Priscila Vanessa seria a mãe dos seus filhos.

O namorico começou com sorrisos envergonhados, olhares de soslaio e mãos que se tocavam ao de leve quando da entrega das caixas de cremes, champôs e ceras depilatórias. Tudo no maior recato, obviamente.
Ai menina, que sorte tu tens. O Joca nunca olhou para ninguém neste shopping e nunca lhe vimos um namoro sequer. Priscila Vanessa totalmente pura e novata nestas lides, tremia tanto, que sempre que ele estava para chegar, precisava de se refrescar com o secador no programa frio, não fosse dar-lhe um fanico no meio do salão.
Posso esperar por ti, à saída do trabalho? perguntou-lhe ele, depois de dois meses de flirt e sorrisos respeitosos.
E assim, iniciaram um namoro sério e respeitador, com a aprovação dos felizes D. Vina e senhor Rocha.
Priscila Vanessa não descurou do seu trabalho no cabeleireiro e nunca permitiu que as entregas diárias de um Joca apaixonado, interferissem com o seu desempenho. Foi promovida a lava cabeças e tudo, pois era rapariga séria e trabalhadora.
Todos os dias, esperava por ela à saída do salão com uma flor que lhe oferecia para enfeitar o cabelo louro e dava-lhe um beijo suave e respeitoso, pegando-lhe na mão e conversavam pelo caminho até casa.
Os fins-de-semana eram os grandes dias do namoro. Ao sábado, depois de ajudar a mãe nas compras da feira, Priscila Vanessa tinha autorização para sair até às sete e meia. Os namorados almoçavam num grande centro comercial de Lisboa, viam as montras e iam ao cinema carregados de pipocas barulhentas e colas com palhinha. Em sábados de sol, passeavam abraçados junto ao rio, trocavam segredos em bancos de jardim ou à sombra de um jacarandá em flor, comiam pastéis de Belém e no caminho de volta, cantavam de cor as músicas de Barry Manilow.
Ao domingo, Priscila Vanessa assistia sempre aos jogos da bola e fazia parte da entusiasta claque feminina, que apoiava a equipa onde Joca era trinco. Seguia-se uma feijoada entre todos os sócios do clube, respectivas famílias e equipa adversária e à tarde as raparigas trincavam pevides salgadas, entre conversas de novelas e enxovais, enquanto os namorados se entretinham em animadas partidas de bilhar e disputadíssimos campeonatos de matrecos, acompanhados de minis e tremoços. Juntavam-se aos pais dela, ao fim do domingo para jantarem todos juntos e enquanto Priscila Vanessa e a D. Vina arrumavam a cozinha, Joca e o senhor Rocha discutiam os resultados da última jornada.
Em semana de santos populares, Joca carregava com o andor do santo na procissão, fazia parte da comissão das festas e ainda tinha tempo de ajudar Priscila Vanessa e a D. Vina a enrolar as centenas de rifas em papelinhos coloridos, que ela vendia na quermesse da paróquia.
Agradeciam na missa campal o amor com que foram abençoados e à noite rendiam-se ao paganismo, saltando fogueiras lascivas, escondendo os olhos em máscaras diabólicas, não resistindo à tentação da gula na barraca dos doces caseiros e dançando agarradinhos no bailarico, com as músicas românticas do cantador contratado.
Depois de um ano de namoro, começaram a usar uma aliança fininha de prata que reforçava o compromisso, abriram uma conta conjunta na Caixa, arrendaram o T2 mesmo ao lado da mãe Vina e do pai Rocha, deram a primeira entrada para os móveis e electrodomésticos na Conforama e decidiram que depois de casar iam ter um casalinho.
Joca disse imediatamente, a menina será igualzinha à mãe, rosadinha e de cabelos louros como um anjo, tal e qual tu, minha querida Priscila Vanessa.
E até hoje, sei que têm sido muito felizes para sempre.

22 comentários:

Vera disse...

Que linda história de Amor, Patti. Às vezes também acho que ser feliz para sempre não é difícil, nós é que complicamos...
Beijos

Pitanga Doce disse...

Ó mulher eu preciso voltar ao meu curso de leitura dinâmica porque ler-te não é pra qualquer Pitanga.

"Atão bamos lá analisare".

Este nome de shopping (Estrela da Noite)ai credo, que nem a minha amiga brasileira Tininha ia abrir uma boutique lá. Já este salão onde a Ivete manicure, Olga da caixa e a Beta (lava-cabeças)lançavam um "olho gordo" deste tamanho á rapariga, nem a cigana Almerinda podia salvá-la. Eram uma "imbejosas" isto sim.
Já o Joca da transportadora "Não esperes muito", (mas esperas tu que tenho que acabar de rir), traz-lhes os cremes errados, que o abacate é para o cabelo e não pras rugas. Vão ficar as velhotas enrugadas e verdes! (ai que isto a ficar bonito!)E ainda pra mais que causou um terremoto no salão e esfriou a água quente e arrancou cabelos a freguesa e fundiram-se as luzes. Acho mas é que quem "fundiu-se" toda foi a Priscila Vanessa que nesta hora foi despedida e já não pode casar com o Joca que teve que mudar o nome da transportadora pra "Não esperes mais nada". hehe

Ó Patti, desculpe se te escrevi outro post mas devias tê-lo editado ontem, que a esta hora, amiga,eu estava de todo...

beijos de boa noite

SONY disse...

Patti,

ora aí está uma bela história que nos faz pensar (como eu penso) que ser feliz não é dificil!!!

Gostei imenso deste post!!
Jito,
Sony

Anónimo disse...

Vi passar aqui na rua um par com os cabelos ao vento e montado num garrano branco, seriam eles?

Gi disse...

Ainda bem que a Priscila foi nessa.
E se, até hoje, foi feliz, a partir de hoje sem a Sara Paula no pedaço, vai ser ainda mais.

Rita disse...

Muito melhor do que a Advogada de sucesso que vive numa fantástica moradia em cascais e que chega a casa às 23.00h e se senta no sofá (de pele) sozinha com uma tigela de cereais a ver TV...
Jokas

Teresa Durães disse...

nada como os finais felizes

Si disse...

Era esta??
Se sim, valeu a pena esperar.
Saiu-lhe pelas mãos fora, como se cada dedo decidisse o futuro de cada personagem.....
Beijinhos

Ka disse...

Mais um belíssimo conto teu Patti!

Beijosss

Miepeee disse...

Credo um shopping como nome de Estela da Noite parece mais casa de alterne.
Adoro finais felizes :)

anniehall disse...

Delicioso , como sempre .Vivas e saltitantes toda as personagens .Uma delícia .
Tantos que esqueçem esta verdade simples de que basta ser feliz :)

Filoxera disse...

Ora ainda bem para eles.
Quanto à tua escrita, belíssima, como de costume, retrata bem as expressões e hábitos populares.
Beijos.

Nina disse...

Ahh que fofo! e esse nome Priscila Vanessa, rsrs foi demais!

Deu pra ficar imaginando as cenas. que casal fofinho.
Mas pensei que as invejosas iam criar algum caso com a menina loura de cara rosada, ainda bem que não...

bjs Patti

1/4 de Fada disse...

Porque é que será que nós gostamos de complicar a vida? Estive todo o tempo à espera da desgraça e ela sem chegar... E não é que houve final feliz mesmo (pelo menos até hoje)?

Anónimo disse...

raramente pensamos na felicidade, Há quem diga que ela não existe,que existem sim momentos de felicidade.
serei feliz?às vezes sou. Se calhar é isso mesmo,fazer com a vida seja um somatório de momentos de felicidade,tantos quantos possivel e se possivel que esse pontos se transformem numa linha continua.Não é fácil.

Rosa dos Ventos disse...

Com todos estes ingredientes a história tinha mesmo que acabar em beleza!
Ainda há estrelas no céu para as Priscillas Vanessas e seus namorados! :-))
Parabéns pela veia folhetinesca, está demais esta história!

Abraço

Anónimo disse...

"Maria Albertina,
como foste nessa
de chamar Vanessa
à tua menina!"

Bem, o que interessa é que são felizes e que descobriram ( coisa rara nestes dias) que não é assim tão difícil encontrar a felicidade, desde que nos contentemos com uma coisa de cada vez.

Paulo Cunha Porto disse...

Até pela gaforina cele(b)rada, pode-se dizer tudo, menos que a Priscila Vanessa nada tinha na cabeça.
Delicioso, Querida Patti.
Beijinho

paulofski disse...

Bom, deixei a minha leitura pra estas horas tardias e provavelmente irei repetir algum comentário prévio mas, sinceramente, é lá nome que se dê a uma mocinha tão prendada.

Que linda história de amor digna de um filme da época de ouro do cinema portugûes.

Beijinhos

BlueVelvet disse...

Esta história fez-me lembrar aqueles filmes portugueses, a preto e branco da Beatriz Costa.
"Vi" mesmo os personagens. Perpassa um non sense em toda a história digno dos Cahiers du Cinéma.
Um belíssimo retrato de uma certa felicidade.

Paulo disse...

quase que dá para ouvir aqui os suspiros das meninas e o silêncio acabrunhado de alguns meninos

porque será que a realidade quando faz sentido, ninguém (ou muito pouca gente) acredita?

Sunshine disse...

Gostei muito do teu conto de final feliz. Acredito que existem histórias assim, mas na maior parte das vezes as Priscilas não se contentam com o Joca que lhes aparece, os Jocam não reparam na Priscila, outras vezes simplesmente não se encontram.
beijinhos com raios de sol