quinta-feira, 13 de novembro de 2008

compor - # 12



O Livro apaixonara-se por ela, desde que vira Clara a desenhar as vogais na primária, com a professora Gabriela.

Criava a bolinha do ‘a’ muito perfeita e redondinha e esticava-lhe as perninhas, uma para cada lado, com um imenso cuidado, para não aleijar a primeira letra.

Ao ‘e’, imaginava-o na sua cabeça de seis anos, como um ponto de crochet e depois como se tivesse uma agulha, igual à da avó Maria, apanhava-o numa ponta, dava-lhe a volta certa e aí estava ele, o ‘e’.

O ‘i’, lembrava-lhe o plie, que tinha aprendido na classe de ballet. Era a sua letra preferida, ouvia o toque do piano na ponta do lápis, pegava no ‘i’, ajudava-o ao plie e acrescentava-lhe uma pinta, como se fosse o pompom do penteado, preso com uma fina rede.

O Livro assistia a tudo de longe e com paciência ficava quieto no seu canto, a imaginar o dia em que ela o fosse escrever. E Clara seguia sem saber do talento.

O ‘o’ punha-a a sonhar. Aquela perninha que saia da bola redonda em direcção ao céu, puxava-lhe pela imaginação e pensava logo que o ‘o’ não andava por ali sozinho com as outras vogais. Estava certa, que aquela perninha voltada para cima ansiava por mais letras. Perguntou à professora se havia outras para juntar aquelas. Espera e verás, primeiro tens de aprender a fazer estas muito bem e depois logo brincas com todas.

O ‘u’, lembrava-lhe o cadeirão de orelhas do avô Mário, de assento fundo e com dois braços grandes, onde ele se apoiava para ler o jornal e ela se enterrava naquele colo, onde ouvia histórias sem fim.

O caderno de linhas de Clara era um brinco de asseio, onde quase nenhuma borracha se tinha alguma vez esfregado. As vogais vinham todas atrás umas das outras, perfeitas como se as tivesse pintado toda a sua vida. Quando chegaram as outras letras, foi uma alegria enorme e inventava uma razão de ser para a existência de cada uma delas.

O ‘s’, era a cauda de um papagaio de papel ao vento, na praia no Inverno, o ‘p’, amigo do soldadinho de chumbo, da história do avô, o ‘q’, um gato de costas, amuado com o rabo descaído, o ‘f’, o pente do namorado da mulher-a-dias, o ‘g’, um anzol igualzinho ao que o pai usava no barco, o ‘m’, as montanhas das férias na neve, o ‘v’, o fundo do vale da casa dos avós e o ‘z’, os desenhos geométricos que a mãe fazia nascer na prancheta.

O Livro deleitava-se de prazer. Continuava a ansiar pelo dia em que Clara o iria descobrir, abri-lo e saber que tinha de o preencher. Mas teve ainda de esperar pelas cópias, ditados, redacções, testes de língua portuguesa, o assimilar de normas e regras da língua, para encadear todas aquelas letras.

E depois o ler. Clara tinha ainda de ler muito, antes de ir ter com ele.

Precisava de crescer primeiro, com todos os outros livros.

Com os contos de Perrault, de Andersen, de La Fontaine e dos Grimm, saber das histórias da Sophia, de sonhar com a Colecção Azul, viver as aventuras da Enyd e conhecer os Cinco, os Sete e o Gordo do mistério, imitar as peripécias das gémeas em Santa Clara e as partidas da Diana e das outras raparigas nas Quatro Torres.

Conhecer o Zé Colmeia, o Gasparzinho, a força da Bolota, os milhões e a bondade do Riquinho e a Brotoeja das bolinhas. Criticar o Patinhas, adorar o mau feitio do Donald e invejar o talento da Vovó Donalda. Trocar o ‘l’ como o Cebolinha e lavar o Cascão bem lavado. Acreditar que existem super heróis como o Fantasma, o Mandrake, o Quarteto Fantástico. e Thor. Rir com o Tom e o Huck, chorar com o Pai Tomás e com o Zezé e os seus queridos amigos, o Portuga e o meigo pé de laranja-lima.

Partir no sonho e ser levada pela imaginação, com o Júlio na volta ao mundo, conhecer as pupilas e a morgadinha, saber dos amores infelizes de Teresa e Simão, de Carlos e Eduarda, de Pedro e Inês, namorar com Garrett, Florbela e o Luís. Multiplicar-se com o Fernando.

Apaixonar-se por Heathcliff!

Investigar com Poirot, Maigret, Perry Mason e Nero Wolf e depois perder-se à vontade e ter Grandes Esperanças.

Lançar-se aos livros e fazer escolhas, seleccionar autores, preferir formas de escrita, envolver-se no ritmo, na entoação, na trama, na viagem, na criação e no talento de muitos.

Tanto para fazer, até chegar o dia em que conhece um Livro em branco, um Livro que nem sequer linhas tem, que ninguém ainda escreveu e que chegará até si na altura certa.

Que sempre a esperou.

O Livro que surge numa altura, em que Clara cheia de saudades das pernas delicadas do ‘a’, das voltas do ‘e’, do plie do ‘i’, da altivez do ‘o’ e do cadeirão do ‘u’, os irá voltar a desenhar, como o mesmo amor de antes.

27 comentários:

Vera disse...

Lindo Patti!
Lindo de morrer, mesmo :-)

Anónimo disse...

Não sei quantos minutos aqui estive, mas apetece-me pegar num livro cheio de letras.

liamaral disse...

LIVROS = APRENDIZAGEM E CONHECIMENTO

LER = VIAJAR

:) Beijinho

Gi disse...

Não estamos a falar da Clara Pinto Correia, suponho! :D

Teresa Durães disse...

a cabala define que cada letra tem a sua prória história e um conjunto de letras forma uma melodia. Assim, ler em hebraico é ler multiplas histórias

Pitanga Doce disse...

Ah Patti, eu viajei no tempo! As primeiras letras, a descoberta pelo gosto da leitura. A tua descrição do I é magnífica.Será que ele não fica com cãimbras de tanto "plier"? Olha, vou copiar o texto até onde começa o Poirot e Maigret e levar para a Julinha ler.
E espero que a Clara preencha logo este livro em branco e possamos ler.

Obrigada por um texto tão suave logo pela manhã!

Bom dia para ti e a Clara.

Si disse...

Está claro que a Clara é, claramente, uma Patti de outros tempos, que a crescer todos os dias, diminui o número de passos que a separa do Livro, ansioso por ser preenchido com vogais e consoantes nervosas pela sua exposição ao mundo.....
Beijinhos

Anónimo disse...

Está a chegar a altura de a Patti encontrar o tal livro em branco para começar a preencher.
Até porque, ao contrário da Clara, tenho a certeza que também conheceu as figuras incontornáveis ( Ena há tanto tempo que não usava esta palavra!)do Astérix, do Tim-tim e do Pateta.

Rita disse...

Eu passei por todas as etapas da Clara excepto a última, do livro em branco à espera de ser escrito. Ainda estou na fase de ler, ler e ler, ler tudo o que me aparece à frente e desta fase não sairei porque ler dá-me muito mais prazer d que escrever. Espero que outros (como tu) escrevam e que me dêm o prazer de os deixar ler...
Jokas e Obrigada

De dentro pra fora disse...

Eu quase me atrevia a mudar o nome da personagem...será que o nome é mesmo Clara!? Hum..não sei porquê mas acho que o nome verdadeiro é mesmo Patricia, será que acertei!? :) É que tudo se encaixa, não achas?

Beijinho

maria inês disse...

excelente texto (historia) paraa acompanhar um café!

:)))))

Su. disse...

O primeiro amor fica-nos para sempre pregado á alembradura...
:)

Estou aqui é procura de uma palavra que defina o que senti ao ler-te hoje... delicia!

Beijinho doxinho...

Su.

paulofski disse...

Resmas de folhas em branco, imaculadas em à quatro, que aguardam a tua escrita e todas juntinhas surgirem no Livro.

Quando eu me aventurava com os Cinco, viajava pelo Missipi com o Tom Sawyer e o seu amigo Huckleberry Finn, ria a bom rir com o Patinhas e me enamorava com as histórias de Alexandre Dumas, o Dartanhan e os quatro Mosqueteiros, até que tinha uma caligrafia bem bonita. Agora são rabiscos ilegíveis e apressados, feios mesmo!

Luísa A. disse...

É um pouco das nossas infâncias e adolescências que aí está, Patti. O meu «trajecto literário» foi esse mesmo – notando apenas a pequena lacuna dos livros e revistas de banda desenhada, mencionados pelo Carlos. Estou certa de que o livro em branco já há muito que começou a ser preenchido. ;-)

Ka disse...

ahhhh ia fazer um comentário parecido ao que o Carlos faz.

Está mesmo na altura de pegares num e começares a preencher :)

Beijos

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Patti,
adorei o percurso da Clara, com a menção à «Mistério» e ao seu Gordo, que era a saga minha preferida do mundo de Blyton. E o ponto de exclamação passional diante da força do implacável mas escravizadíssimo a Cathy vingador de «O Monte dos Vendavais» pode tanto significar que os livros por esvrever são um fantasma que assombra qualquer amante da Leitura, como a fidelidade à mesma ser durável para além da ideia da própria vida.
Mas namorar com Garrett deixa-me gelado. Eu e o Perfumadinho não jogamos e faço já aqui uma "cena de ciúmes".
Beijinho

BlueVelvet disse...

Uma forma deliciosa de se perceber, para quem ainda tem dúvidas, que sem ler não é possível escrever.
E que o percurso tem que ser feito desde o princípio sem saltar fases.
Não adianta começar a ler Amor e Preconceito se antes não se tiver lido As Mulherzinhas.
E ai sim, se houver talento, um livro em branco estará à espera de todas as Claras.

cristina ribeiro disse...

O livro deleitava-se de prazer, mas certamente o meu não foi menor ao ler este texto ditado pelas enormes asas de imaginação da Patti. Como o Carlos digo "está na hora de encontrar o livro em branco para preencher" !

R.L. disse...

Conto tudo sim :)

Quanto à história, maravilhosa... Clara, além de ser o nome da minha Mãe e sobrinha mais velha, faz parte de um imaginário que tb é meu.
O que eu chorei com a Cabana do Pai Tomás, que idade teria? 11?
E faltou-lhe aí a Condessa de Segur e os desastres de Sofia, livro para mim, inesquecível - dei-o há pouco tempo à minha sobrinha de 7 anos (Clara... :) ), na esperança que ela um dia o venha a ler e a saboreá-lo tal como eu.

*

Patti disse...

Vizinhança:
Faltam muitos livros, pois faltam. Muitos outros li e alguns referiram vocês aqui, mas é impossível colocar todos.

Pitanga:
Mostra todos estes livros à tua Julinha.

Anónimo disse...

Se ainda não voltou ao Duro, o ajudante do Mandrake chamava-se Lothario. Enigmático!

Foi uma bela viagem, com algumas estações onde não parei, mas não menos bela. Gostei muito de a ler!

Patti disse...

Mialgia:
Bem vindo ao Ares!
É isso mesmo, Lothario e era um príncipe africano fortíssimo.
E adorava aquela capa escura do Mandrake, mas forrada a encarnado vivo, que parecia que voava, quando ele fazia o tal gesto característico.

Volte sempre. :)

Anónimo disse...

Assim farei e com todo o gosto, Patti.

Não sei se mais alguém tem este problema, mas é muito difícil entrar no Ares. Eu explico: ontem não conseguia mas, às tantas, foi-me pedida a instalação de um componente do Windows. Assim fiz, e, após várias tentativas, lá consegui entrar e deixar o meu comentário.

Esta manhã, e estou a usar outro PC, surge a msg que o Windows cannot open, bla bla e Operation aborted. Após várias tentativas lá consegui aceder à caixa de comentários, mas continuo sem visualizar a página. Muito Bizarro :-((

Patti disse...

Mialgia:
Quem tem pouca memória no pc, já se queixou que demora muito tempo a entrar no Ares e às vezes vai mesmo abaixo. Agora o que me relata, ainda ninguém me disse. Também acho estranho e não sei que lhe diga.

Anónimo disse...

Problema de memória não será. A menos que seja a memória deste utilizador que, quando convém, é curta...

Agora consegui aceder à primeira. Pode ter sido uma daquelas viroses gripais que andam por aí...

Anónimo disse...

É de forma tão mágica que contas a descoberta das primeiras letras, até chegarmos ao Livro em branco.. Desde da tenra infância até agora, julgo. Fiquei tanto tempo a olhar para o texto e imaginar como era comigo que perdi a noção do tempo... Se me é permitido opinar, creio muito sinceramente que alguém que 'fala' assim como tu 'falaste' com esta história, já começou á muito a preencher o seu livro em branco. Beijos *

mariam [Maria Martins] disse...

apaixonante esta aventura p'lo mundo das letras, dos inícios, dos começos e recomeços... Patti, venha de lá esse livro sff :) :)