sexta-feira, 7 de novembro de 2008

rápidas melhoras


Estive ali durante toda a minha vida e a dela. A partir de uma certa idade, tentei espreitar mais para fora, de maneira a conhecer os meus outros companheiros de mastigações e nessa altura levei logo com a alcunha de semi-incluso. Como se eu não tivesse já nome de Siso! Eu, o dente mais independente e marialva da sua dentadura. O único da minha espécie, que nas próximas décadas irá entrar em extinção.

A partir dessa primeira e única espreitadela sou: “o semi-incluso que não está ali a fazer nada e poderá muito rapidamente tornar-se num foco de infecção, como aliás já está a acontecer”. Foi o início de uma campanha contra mim, baixa, mesquinha e cheia de golpes sujos.

Ontem de manhã foi o veredicto final e a minha hostess, a Patti, que já estava com um otite externa, diagnosticada 1h antes que a pôs quase surda, ficou de rastos quando soube tal como eu, que ia ser sujeita a uma cirurgia, ‘in a moment’!

O aparato de aparelhinhos e apalherómetros na mesa do gabinete médico, mais parecia um show-room de fornecedores de consultórios de estomatologia. O barulho tlim-tlim, que fazem aquelas ferramentas umas nas outras, ao saírem de dentro de saquinhos azuis impolutos, é arrepiante.

Eu, cheio de peneiras pela importância que me estavam a dar, fiz tanto esforço para espreitar cá para fora, que até consegui ver a radiografia que o médico lhe mostrava com a minha cara. Lindo eu, só vos digo! Foi o momento alto da minha vida quando me vi reflectido naquela película negra. E depois …

… depois tudo acabou para mim, no momento em que aquela finíssima e pontiaguda agulha, carregadinha de um líquido acre que cuspiu sem piedade, me perfurou a raiz sem qualquer hesitação, uma e outra vez, deixando-me completamente abananado e sem saber onde estava, só conseguindo ouvir muito ao longe, o riso dos outros dentes, troçando da minha sorte.

O pior dos horrores ainda estava para chegar e sem sequer ter tempo de entender o que me estava a acontecer, um luzidio apetrecho de metal, frio e aguçado, começou a abrir caminho e a esburacar em volta de mim, ferindo de morte a minha grande amiga gengiva cor-de-rosa, que coitada, não tendo nada a ver com o assunto, sangrava e chorava de dor, perfeitamente desesperada e perdida naquele ataque surpresa.

Depois chegou outro aparelho, ainda mais grosso e forte que o primeiro, mas nessa fase a martirizada gengiva cor-de-rosa, já tinha desfalecido de todo e eu cada vez mais dopado, só rezava para que aquilo tudo terminasse rapidamente.

Mas não. Resolveram descansar uns minutos e deixaram-me ali, integralmente descarnado, com as minhas partes pudendas, vergonhosamente expostas aos olhos de todos os interessados da cavidade. Foi só ouvi-los a gozarem-me; a doida varrida da língua, a irrequieta da saliva, os meus quase ex-companheiros, as parvinhas das gémeas amígdalas e acho que ainda ouvi uma piadinha obscena, lá das profundezas do esófago.

E finalmente, com uma força sobre-humana, atirou-se a mim o mastronço, o alicate arrogante, que sádico ainda me disse: foste!

E fui.

Fui pousado em cima de uma gaze imaculada, onde mostrei ao mundo as minhas duas desmedidas raízes. Abandonado e ao frio naquela mesinha, juntamente com os aparelhos metálicos, carrascos sangrentos, responsáveis pela minha morte precoce e injusta, ainda pude ver a minha antiga dona, que de olhos muito fechados, levava cinco profundos pontos, cosidos e apertadinhos por mãos ágeis, com a linha de pesca mais grossa que eu já vi.

27 comentários:

Vera disse...

É por essas e por outras que eu não tenho dentes do siso e consequentemente, muito juízo!
Agradeço aos meus Pais que quando me conceberam (numa noite de passagem de ano, segundo eles dizem, lá p'ros lados de Moçambique) deveriam estar também com muita falta de juízo! deu nisto...
Bjks
As melhoras!

BlueVelvet disse...

Tadinho dele, perdão, tadinha de ti:)
Imagino o que isso custa.
O meu filhote teve que fazer isso a dois e foi um petisco.
Como prémio de consolação agora só bebes líquidos e papinhas.
As melhoras.

mariam [Maria Martins] disse...

O! Patti,
sinto muito!
LOL

magnífica explanação... quase dá vontade de rezarmos uma grande oração à memória do dito "incluso"!

pior piorzinho mesmo que isso, é estamos a meio da "operação implante" consiste numa cirurgia parecidita com essa, mas onde nos metem um parafusinho metálico maxilar acima, onde mais tarde (3 meses após) irá ser enroscado um belíssimo dente! p'la módica quantia de €€€€€€%$#":!|?) "chiça"

um abraço solidário!
bom resto de semana
:)
mariam

SONY disse...

Patti,

acontece, também eu já não os tenho. Espero que não te tenha sido "arrancado" por um barbeiro:-)

jito,

Sony

linha?
Isto agora até há os pontarecos descartáveis bem mais cómodos.

As melhoras. Não é tão mau assim ir ao dentista, eu gosto, ando sempre lá caída, por isso não me lembro de ter dor de dentes.

Anónimo disse...

Ai carai, carai, que me fizeste arrepiar. E depois não houve direito a gelado?

Luísa A. disse...

Sei que não sofreu, Patti, mas nós, deste lado, fartámo-nos de sofrer. O relato está demasiado expressivo! ;-D

Gi disse...

Eu nem vou dar este post a ler a Mr. Darcy; 4ª feira será a vez dele. :(
Rápidas melhoras, sim, para ti que o dente já se foi. Ainda te resta siso, miúda?

LeniB disse...

Não me fales em dentes nem em dentistas. Desde o início do ano que para lá caminho. Os dentes têm agradecido e a carteira emagrecido!!

Si disse...

Uiii...se é assim com um, nem me atrevo a pensar no que seria com os meus quatro, todos todos inclusivozinhos, tão deitadinhos ao comprido no osso do maxilar, que desconfio que uns e outro já se uniram em matrimónio sacramental...e, a não ser que haja grande zanga entre eles, e que algum peça o divórcio (sim, porque o osso é polígamo, não é??) lá irão ficar, até que a morte os separe........

Rita disse...

Só mesmo tu para transformares uma coisa simples e banal como arrancar um dente do siso numa quase obra literária...
Jokas

Luís Milheiro disse...

sim senhora, grande aventura numa das cadeiras menos apeteciveis que conheço, Patti...

(luis eme)

Ka disse...

Espero que hoje estejas melhor!!!


Beijinhos grandes e rápida recuperação

Anónimo disse...

Até arrepia,bolas!
Desejo que agora esteja tudo ok.
bjs

De dentro pra fora disse...

Tadinhaa! eu sei o que passas-te, eu também já tirei dois, os de cima, os de baixo ainda cá andam meios escondidos pela 'amiga cor-de-rosa'mas bem comportadinhos, pra já...

As melhoras e bom fim de semana

Filoxera disse...

Conseguiste impressionar-me.
Espero que o incómodo passe depressa.
Beijos.

Anónimo disse...

Dizem que temos 4 sisos. Presumo que seja um para cada estação do ano. Só vi nascerem três. Calculo que o referente ao Inverno, sabedor da minha fraca admiração por essa época do ano, nunca ousou mostrar-se. Um outro, pirou-se sem avisar. Quase o ia engolindo misturado com um caril de caranguejo, numa noite oriental. Devia ser o do Outono, pela forma original como decidiu dizer-me adeus.
Outro deu-me um trabalhão idêntico ao seu. Era, com toda a certeza, o da Primavera. Ambos estávamos felizes por nos termos conhecido e recusávamos separar-nos. Um dia teve que ser e, desde aí, as Primaveras não voltaram a ser as mesmas. Há quem diga que é por causa das alterações climátcas, mas não acredito. É mesmo resultado da separação que nenhum de nós pretendia.
Resta-me, portanto, apenas um: o do Verão. Já levou tanto chumbo, como coelho bravo a fugir de caçador teimoso. Permanece por cá, estragadinho como os últimos Verões. Insisto em não me separar dele, com medo que também o Verão se acabe. Até quando?

mariam [Maria Martins] disse...

Patti,
bom fim-de-semana
e melhoras! (dieta líquida, agora, certo?)

um abraço
mariam

Patti disse...

Carlos:
Temos poeta?

anniehall disse...

Arrepiante ....
As melhoras !

Anónimo disse...

Poeta eu? Quem me dera, mas como já deixei provado lá no CR, sou uma nulidade nessa área.

1/4 de Fada disse...

Como te compreendo, Patti, a esta hora deves estar de gelo na cara, a debelar o inchaço! Eu tirei os 4 infelizes, 3 da mesma maneira que tu e um que nem se via, de tão envergonhado que era. Mas como não quis estar com sofrimentos escusados, foi tudo em 2 vezes só, por causa das coisas, o lado direito num dia, o esquerdo no mês seguinte...
Os meus sentimentos.

paulofski disse...

Os dois que moravam na arcada de cima, surgiram tardios, lá ao fundo, um de cada lado, sogaditos e sem refilar muito. Mais tarde, não sei bem de que lado, um espreita na arcada de baixo, reclama com o vizinho e com o maxilar porque não tem espaço para nascer. Que fazer, ficaste pró fim, diz-lhe o amigo molar. E lá ficou, a espreitar e a incomodar. O irmão gémeo, ainda com menos juizo, lá apareceu e não contente com isso fez inchar de raiva a gengiva martirizada. Tanto, tanto que o companheiro da arcada de cima, sem culpa nenhuma, mordia a gengiva a cada mastigadela. Que fazer? Tirá-los, sentenciou o doutor dos dentes. Vens cá e tiramos o refilão que não te deixa comer. Depois o irmão desse malandro. Os dois de cima vão embora também para não se ficarem a rir. E a custo lá foram, um a um, um de cada mês. Fiquei mais leve, mas a falta de juizo não sofreu abalos e, entretanto, outro por cá anda, desvitalizado.

Desejos de melhoras minha amiga.

Beijos

cristina ribeiro disse...

Já passei horrores nessa cadeira. Agora, quando penso nas agonias passadas, ela até é confortável: esse dente tem um dom para tornar as coisas tão reais!...

Anónimo disse...

O que fez um simples dente
na caneta de certa gente!

ana v. disse...

Deliciosamente arrepiante, Patti. Livra!
Bom fim-de-semana, apesar de tudo...

Patti disse...

Vizinhança:
Obrigada a todos pelas palavras de alento, mas só vos digo para tomarem bem conta desses tipos chamados de Sisos...são do catano!

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Patti, pois eu sou daqueles a quem não nasceram. Mas devo dizer que, de alguma maneira, me sinto um semi-incluso extraído.
Beijinho