quarta-feira, 1 de outubro de 2008

chamem por mim, que eu vou - #6


foto annemiel's phtostream

A bem dizer, era popular, espevitada e muito dada. Emanava um cheiro próprio. Único. Mas só. Não havia ali aquelas coisas de mãozinhas com muitos dedos e segredos ao ouvido. Respeitinho era bom e ela gostava.

Quem não gostava nada eram as outras. Galdéria, desfrutável, manipuladora e até consumida lhe chamavam.

Era uma rapariga quente, preenchida q.b., com trejeitos lascivos, gestos desenvoltos e de andar sugestivo. Respirava volúpia, deitava lúbricos olhares, muito escorregadios e da sua boca saíam frases cheias, que deixavam os rapazes mudos e sem resposta, mas em estado de graça e embriagados com aquele perfume que se soltava da sua pele. Tinha o mérito de os colar ao chão à sua passagem, sem saber o que dizer, quando ela lhes atirava um simples bom dia. Ficavam espantados e tolinhos de todo, sempre que ela respondia tranquila à pergunta, oh coisinha, como te chamas? Belisária, e ria-se.

Oh filha, que ficas falada, apoquentava-se a mãe. Que disparate, agora já não se pode ter dois dedos de prosa com os rapazes que sou logo tema de conversa? E não ligava nenhuma, seguindo a sua vida como sempre e evitando dar importância ao que o restante mulherio dela cochichava.

Aproximava-se a altura da festa da aldeia, que era o momento alto para toda a gente. A feira, a procissão, o fogo, as tasquinhas, as rifas da paróquia e por fim o almejado bailarico, onde todas as raparigas casadouras, ansiavam por conhecer moços das aldeias vizinhas e arranjar até noivo. O mês anterior era um ror de idas e vindas à cidade próxima, para escolherem vestidos, fitas, laços, colares e brincos, sapatos de salto. Toda uma quantidade de enfeites que as iam pôr divinas perante, quiçá, o rapaz dos seus sonhos.

Belisária não tinha dinheiro para tais luxos e diga-se que também não precisava deles. Já conhecia quase todos os rapazes e nenhum lhe tinha ainda agradado, apesar de ser a preferida da maioria deles. Ao baile desse ano não sabia bem porquê, mas não lhe apetecia muito ir.

Belisária, a primeira dança é minha; não te atrases como no ano passado; olha que eu venho de longe para te ver; a festa não começa sem ti; já me prometeste duas danças; levo-te um presente; e eu, flores do jardim da minha mãe; Belisária a que horas chegas? E durante uma semana a rapaziada não parou de andar à volta dela com perguntas, convites, insistências, propostas, ofertas e inseguranças. Dizia a todos que sim, eu vou, não, não me atraso, está bem eu danço contigo, mas aquela recente dor no peito, teimava em picá-la. Não falou disso à mãe e lá foi ao famoso baile da aldeia.

Nem fazia caso da entrada triunfal, que sempre provocava a sua chegada. Eles a rodeá-la, precipitados e acanhados e elas a olharem-na invejosas e maldizentes. Será que este ano ficamos de novo sem pretendente? Mas ninguém consegue ver que ela traz sempre o mesmo vestido coitadinho e sem cor? E aquele perfume? Parece que embebeda os homens!

Sentiu-se mal, logo na primeira dança, a dor picou-a fundo e agora com mais força. A respiração foi-se, viu tudo à roda, deitou um último sorriso à mãe, que corria na sua direcção, escorregou e dormiu para sempre. Mas o seu perfume inebriante ficou consigo.

O enterro foi dois dias depois. Gente de todo o lado veio dizer-lhe adeus, naquele dia de calor intenso. Afinal Belisária, gostassem dela ou não, era conhecida por tudo o que era aldeola e arredores. O perfume do seu corpo era célebre e a brisa sempre o espalhara e lhe dera fama. Os homens tristes, os rapazes de rastos e sem préstimo e elas compenetradas do seu papel de sentidas, mas aliviadas. Nunca um defunto tinha recebido tantas flores. Formou-se um monte em cima da sua campa, como se fosse um pequeno outeiro perfumado e colorido. Partiram dali, completamente extasiados com aquele intenso odor.

E depois choveu. Chuva mansa de Verão. Que acalma as hostes, beija a pele, afaga os clamores e fixa as fragrâncias. As gotas breves salpicaram a imensidão de flores, que deram risinhos agradecidas e assim, mais frescas e leves foram descansando e deslizando pelos poros de terra permeável, debaixo de si. Chegaram até onde repousava Belisária. Uma e outras, conciliaram-se num devasso aroma nocturno. O calor que ainda remanescia do seu corpo morto, envolveu-se no odor intenso das satisfeitas flores e dessa união nasceu um perfume exclusivo e tão singularmente poderoso, que a terra que o sobrepunha não aguentou o aperto e resolveu rasgar fendas para o deixar fluir e perder-se no ar.

A aldeia dormia de janelas abertas para as estrelas, o povoado era pacato e sem surpresas nocturnas e o calor de Verão, excessivo. Foi desta forma, que o perfume nascido da morte de Belisária, se imiscuiu sorrateiro pelo quarto das moças encalhadas.

Acordaram muito cedo, destapadas e sem roupa no corpo, despenteadas. De sorriso aberto na cara. Que noite aquela, plena de sonhos, arrepios e sobressaltos. Saltaram da cama e abraçaram a manhã com força, debaixo de um duche frio e revigorante. De cabelos soltos e desalinhados, alargaram decotes de blusas brancas, subiram bainhas de saias rodadas, enfiaram tamancos de tornozelo à mostra, perfumaram-se com a textura das pétalas que encontraram no parapeito da janela e saíram afogueadas para a rua.

O povo da aldeia estava pasmo. Incrédulo.

Moças casadouras, ainda ontem recatadas e serenas, portavam-se agora de forma totalmente descabida. Riam e falavam alto, sentavam-se de pernas quentes e afastadas sem qualquer réstia do seu antigo pudor, lançavam olhares lânguidos aos pobre moços embasbacados, chamavam-nos com vozes roucas, roçavam os ombros cálidos e nus pelos seus olhos esbugalhados, envoltas num poderoso perfume que jamais alguém sentira por aqueles lados. Nem o cheiro de Belisária, conseguira alguma vez aquele efeito nos homens.

Os pobres rapazes, perplexos, mas excitados com aquele ritual de acasalamento e ébrios pelo aroma no ar que lhes consumia as entranhas, aproximaram-se das vorazes predadoras e foram imediatamente consumidos por olhos, mãos, bocas e corpos que haviam estado anos e anos em câmara ardente. Num degustar colectivo, onde elas provaram e comprovaram de tudo e de todos, poderam optar e eleger finalmente, o tão ansiado noivo, desejado por tantos anos.

Marcaram-se jantares de noivado, combinaram-se datas de cerimónias de casamentos, convidaram-se padrinhos e escolheram-se locais para noites de núpcias.

O povo não aceitou o convite para testemunhar daquela feitiçaria e recusou-se mesmo a estar presente na festa após a cerimónia religiosa. Como forma de protesto, todas as janelas e porta da aldeia foram fechadas e trancadas, até porque foi um dia em que tresandava pelo ar um forte cheiro de luxúria, que ia aumentando de intensidade à medida que a noite se aproximava. Tentações do demo.

Terminada a festa, os noivos pareciam abelhas ao mel, pela forma como quase voaram em direcção às camas que os esperavam. Se foram felizes para sempre, ainda ninguém conseguiu contar. Desde aquela noite que nunca mais se soube nada deles, pensa-se mesmo que por lá continuam no desfrute. Ouvem-se gritos vindos das casas, gargalhadas felizes e longos suspiros. Há até quem diga, que viu por ali a pairar o fantasma prazenteiro da Belisária. Mais o seu cheiro, que ficou impregnado no local.

E na aldeia nascem flores perfumadas por todos os cantos, sem que ninguém as tenha sequer, alguma vez semeado.

28 comentários:

Anónimo disse...

Como apreciador que sou de Gabriel Garcia Marquez tinha forçosamente que gostar deste conto, até pelo perfume.

Patti disse...

Salvo:
Conduto, conduto! GGM? Tu não brinques com coisas sérias :):):)

f@ disse...

Imaginativo...
Sementes transportadas no vento... como uma dança ...
beijinhos das nuvens

Gi disse...

Ai as plantas carnívoras, são belisárias e sanguinárias.

Anónimo disse...

Parabéns, Colega! Para quando um livro? Rita Ferro

Patti disse...

Rita:
Ah minha querida, sempre espirituosa.
:)

Luis Eme disse...

gostei da história... e do final milagroso, Patti.

estava a pensar nas moças que deviam estar felizes com o desaparecimento da maior concorrente, quando ela lhes ofereceu "a sua graça"...

claro que a realidade não é bem assim. nós homens, nem sempre gostamos destes "atrevimentos" e tentamos escapar à teia provocatória...

maria inês disse...

não gosto de ser repetitiva nos poucos comentários que te tenho feito, mas de facto, o teus textos melhoram a olhos "lidos"!

Vamos lá a compilar uns quantos para eu mostar a quem sabe!

(vou levar o João Maria)

Anónimo disse...

O espírito de Belisária vagueia pelo mundo desde o tempo em que as flores se apoderaram dos corpos e no ar se começou a ouvir "Love is in the air".
Linda história sobre a aldeia global. Pelo menos, foi assim que a entendi.

Anónimo disse...

Será que as velas da Manulena também têm o perfume da Belisária?
Já estou a ver um produto inventado por ti em parceria com a Manulena.

Velas "Belisária", o perfume eterno.

Com direito à história explicativa e tudo.Que tal?

Depois quero comissão nas vendas,está bem?

Anónimo disse...

Vaya imaginación! Enhorabuena.

besos
Claudia

cecília disse...

Não comento...
Há palavras que não saem, envergonhadas e minúsculas, quando confrontadas com outras tão poderosas....

Pitanga Doce disse...

E pronto! Lá estavas tu aos tres minutos depois da meia noite a dedilhar o teclado num frenético borbulhar de pensamentos, misturando ficção com os sonhos de muitas meninas casadouras que já quiseram ser uma Belisária.

beijos perfumados

Vera disse...

Patti, li-te, como sempre, logo a seguir a postares. Fiquei parada, sem saber o que escrever. Um post destes não se comenta...um post destes lê-se, recorda-se, recomenda-se, guarda-se para se citar em ocasião adequada.
Tu tens mesmo que publicar!!!
Beijos destes Ares!

Filoxera disse...

Imaginação, arte narrativa, misticismo e uma boa trilha sonora a acompanhar. Parabéns por mais um conto delicioso. Ou devo dizer perfumado?!?

Rita disse...

Estes teus contos são tão bons de ler para serem perfeitos só mesmo em papel para poder desfolhar sentada num sofá à frente da lareira...Obrigada.
Jokas

Ka disse...

Excelente e perfumada história!

E já estou como diz a Pitanga, imagino-te fervorosamente a dedilhar o teclado fazendo sair toda esssa imaginação :)

E nós a lermos-te deliciadas :)

Beijosss

Pitanga Doce disse...

KA, isto deveria ser filmado, não achas?

Vim ouvir a música. A tarde está "carregada".

1/4 de Fada disse...

Uma história linda sobre o amor eterno. Tens razão com o que disseste em relação ao final, é semelhante, de alguma forma...

mariam [Maria Martins] disse...

Patti, passei só para dizer olá, tenho tido uns dias muito CHEIOS de trabalho e à noite estou demasiado cansada para aqui vir... :(

no fim-de-semana volto e leio tudinho com calma...

um resto de boa semana
um sorriso :)

mariam

Patti disse...

Pitanga:
Filmado? Olha que agora me querem pôr câmaras no meu Ares!

Pitanga Doce disse...

E tu cobravas direito de imagem! hehehe

Anónimo disse...

O que eu gosto da flor de maracujeiro com que ilustras este excelente post.

Gasolina disse...

Degustei as palavras, saborosamente. Aliás como elas me merecem vindo de quem o sabe fazer.

Grandes palavras perfumadas Patti.
É que se sente que gostas, que fazes os teus textos de alma.

Uma vénia para ti.
E um ramo de belisárias sem laços nem enfeites.
Tu tens o dom.

BlueVelvet disse...

Um conto envolvente com um desenrolar inesperado e um final lindíssimo.
Pelo meio uma mordaz crítica de costumes.
Definitivamente o Outono inspira-te.

Anónimo disse...

muito bonito

Ka disse...

Pitanga,

Famos fazer uma petição on line (parece que estão na moda...lol) para filmar, o que achas???

:D :D :D

Beijos às duas

Patti disse...

Cecília:
Obrigada mais uma vez e tem o meu mail à sua disposição: aresdaminhgraca@gmail.com