terça-feira, 7 de outubro de 2008

putrefacto - #7

pintura de michael knowlton
Luís era cobarde. Sempre fora. Até para sair das entranhas da mãe, tinha demorado mais vinte dias que os irmãos. Desde pequeno que chorava por tudo e por nada, ficava sempre perfeito no papel de vítima, alimentava-se da mania da perseguição, fomentava intrigas, possuía ódios de estimação, até de estranhos, por pura inveja e embirração, ou só porque lhe apetecia. Figurinha que vivia pela calada e que na frente dos outros era uma pura alma, dócil e pacata. Nunca tivera uma namorada de jeito, porque cobiçava sempre a dos outros, não chegou a aluno mediano, porque era cábula e amigos teve poucos ou nenhuns, porque era vazio. No trabalho era frustrado, inconformado e viva sempre desiludido. Trabalhava muito mais que qualquer outro, tinha colegas invejosos, os chefes eram uns incapazes e os clientes uns ignorantes e chatos que lhe davam cabo da cabeça. Dizia ele. Tanta era a amargura dentro de si e tamanho era o esforço para se portar com uma postura cândida perante os outros, que começou a sofrer de pesadelos nocturnos, visões e episódios alucinogénios.

Como descarregar então tanta raiva, guerras internas e sobretudo a solidão de uma vida, que tinha até agora dado muito poucos frutos? Descobriu o prazer de soltar o ódio inconsciente que tinha de si próprio, sob a forma de manifestos públicos sem assinatura e tudo na sua vida dupla se tornou mais simples de digerir. As borbulhas pestilentas do seu coração rebentavam o pus amarelo, naqueles textos alucinados e fantasiosos, onde desabafava as infecções da alma, sempre sem cara e sem nome. Intitulava-se Hiena e nenhum outro pseudónimo seria tão apropriado. Eram páginas de frases empolgantes, tentativas de enxovalhos públicos e discursos triunfantes, proferidos em cima de um palanque invisível e oco, aguardando que a plateia o aplaudisse em estridente ovação. Ao fim da tarde, logo a seguir a mais um dia cão de trabalho e com a cabeça a fervilhar de pequenos vermes e insectos, escrevia desalmadamente mais uma página de agonias, dirigida ao último indivíduo que o tinha irritado, que não lhe tinha dito bom dia, ou que tinha umas calças novas. Na calada da noite, colava-as em locais estrategicamente escolhidos, como a parede do café central, a estátua do poeta da vila, a porta dos correios, a entrada da capela, a paragem da camioneta e nas bancadas do campo da bola. Regressava a planar para casa e era aquela a única noite da semana que dormia bem. Prazeres efémeros que a cobardia lhe trazia.

No início, os habitantes da vila que até nem eram assim tantos como isso, mas que eram pessoas pacatas, sem maldade e sobretudo provincianas, liam aquelas missivas, trocavam uma frase ou outra sobe o assunto, seguiam com a sua vida e nem atingiam que estivesse ali, naquelas feias palavras um destinatário, e muito menos o próprio visado entendia que aquilo era com ele. Nada do que estava escrito tinha razão de ser. Era gratuito. E as carapuças de pouco serviram. Compreendiam tudo como a obra de um autor atormentado, que talvez por ser muito feio, teria vergonha de se mostrar e revelar-se ao povo. Não o levaram muito a sério e tiveram pena dele. Isto não lhe agradou sobremaneira, o impacto pretendido e a tentativa de injectar o medo na população, fora gorada. Dedicou-se a uma empreitada, cada vez mais empolada de missivas exacerbadas e aí, o povo abandonando a ideia do autor pobre coitado, passou a interpretá-lo como ele realmente era: isolado e com uma auto-repulsa latente. O número de manifestos aumentou, os absurdos escritos subiram de tom e as páginas transformaram-se rapidamente numa novela de traços autobiográficos. E o Hiena, sem se dar conta, tornou-se no seu personagem principal, um ser ignóbil, possuído por algo maléfico que o colocava fora de si. Mais tarde ou mais cedo, alguém repara no elemento cobarde, ele revela-se pelo que diz e depois pelo contrário, pelo que não faz. É esse o seu ponto fraco, é por aí que quebra e cai. Pelo recuar. Pelo agir na sombra.

Concluíram que na vila morava um louco encapuçado, provavelmente com dupla personalidade e que se movimentava no meio deles sem se fazer notar. Como reagir, enfrentar e entender um ser assim, que odeia de borla, sem razão aparente, sem motivo sequer? Não foi o Hiena, que por si só, os fez reunir e reflectir perante aquela nova realidade e os colocou a trocarem ideias. A tomada de consciência da existência de alguém assim, despertou a população para dentro de si própria, da sua vida, do seu dia-a-dia, da sua vila. Acordaram de repente, uns para os outros.

Repararam, talvez pela primeira vez nos cabelos brancos da mulher da mercearia, nas olheiras do homem do talho, na solidão do sacristão, nos olhos infelizes do engraxador de rua, no alcoolismo do presidente da junta, na simpatia da funcionária dos correios, no frio que passavam as prostitutas da rua, da entrada da vila, dos filhos pequenos que elas criavam em semi-presença, na agonia financeira da recente viúva do lavrador, no destino sem horizonte, incerto e injusto do jovem que não conseguira ir estudar para fora, no cuidado que o jardineiro dedicava aos canteiros, no fiado sem fim que o dono do café suportava, na bondade da padeira, no abandono do parque infantil, nas ervas daninhas da escola primária, na miséria extrema do mendigo da vila, na vida apática dos velhos do lar, na exclusão das duas famílias ciganas. E por fim, no cotão opaco do egoísmo, que se foi acumulando nos seus enormes umbigos.

Quando se abre os olhos ao nosso redor, podem passar muitas noites seguidas, que eles dificilmente voltarão a fechar como antes. Aquilo que se recebe em troca quando se praticam atitudes de altruísmo e de solidariedade sem esperar nada, não tem qualquer preço. É muito maior o retorno porque a oferta é desinteressada. E quando se começa, é improvável que se consiga parar. Aqueles homens e mulheres e aquela vila modificaram-se para sempre. Depois de muitos anos, o jovem, agora homem, a quem deram a mão para ir estudar para a grande cidade, contou a história no seu livro de estreia.

A seguir à introdução da obra, feita pelo reabilitado presidente da junta, o público correu para o autor a perguntar, e o Hiena onde está, apanharam-no, desistiu das missivas, o que foi feito dele, quem era? E isso interessa? – Sorriu ele.

21 comentários:

Anónimo disse...

E aquela gente não lhe dedicou um monumento qualquer? Nem o nome numa rua onde não se pudesse passar à noite?

sonia disse...

Foi inoculando seu próprio veneno que acabou por curar-se da doença da alma. Belo conto este! Gostei!

Gi disse...

Cada vez há mais personagens assim, cada vez mais ANÓNIMOS.

Nina disse...

Texto perfeito Patti, tao bem escrito. Existem tantos Hienas por aí. A sorte é que o seu, acabou sabendo colocar pra fora suas angústias...apesar de ter sido de forma dolorosa e meio doentia.

Teresa Durães disse...

é difícl recuar quando se abre os olhos

Rita disse...

Acabou por lhe sair o tiro pela culatra...Muito bom!
Obrigada

Anónimo disse...

A blogosfera é sitio que mais "hienas" tem.É só ir a muitas das nossas caixas de comentários e/ou a ulguns blogues "anónimos".
Como sempre,mesmo no centro do alvo e com pertinência actual.

Acho que vou utilizar o primeiro parágrafo quando me aparecer por lá(vila forte) uma "hiena" destas.

carlota disse...

Existem tantas Hienas por ai.
Gostei do conto.

Patti disse...

VIZINHANÇA:

Apesar da Internet ser prolífera em hienas, não foi nela que eu pensei quando escrevi esta história. Falo mesmo do nosso dia a dia, do mal que convive perto de nós e nem nos apercebemos dele.

cecília disse...

A Patti dá-me licença que, pela calada da noite, pé ante pé, a olhar por cima do ombro, afixe este seu post em 2 ou 3 locais de trabalho??????

Caía que nem ginjas!!

1/4 de Fada disse...

Não é na blogosfera que as hienas são perigosas, aí já nós sabemos de cor e salteado que elas existem e identificamo-las com facilidade, é mesmo na vida real que elas são prejudiciais, ao contrário do que acontece na história da Patti, que tem a visão positiva que ela nos passa sempre.

Anónimo disse...

E pá essas são mesmo do caraças,livra!

@ღღ@ disse...

hienas ?
cruzes canhoto ;)

vou ja fugirrrrrrrrrrrrr

Filoxera disse...

Já ia dizer que era demasiadamente estereotipada, tal personagem... mas deste-lhe a volta. Boa!

(porquê aqueles parêntesis e "BreakNewLine", etc?)

Beijos!

Patti disse...

Filoxera:
Acho eu já resolvi. Obrigada pela chamada de atenção.

BlueVelvet disse...

Infelizmente hienas, há na vida real e naturalmente, porque a net é feita por pessoas, também nela as há.
Normalmente, acabam engolidas pelo seu próprio veneno.
Texto de uma realidade de pormenores que se torna incomodativo, talvez porque as vimos bem retratadas no que escreveste.

Pitanga Doce disse...

Ah pois eu também via as letrinhas escuras mas agora já não. E não disse nada porque achei que podia ser efeito da história da Bluevelvet, da multa do guarda e depois do peixe com chuvinha e a senhora de beige e depois chego aqui encontro hienas. Ai que hoje está tudo tão sério! É a chuva? Não quero ficar triste não!

beijinhos as meninas

Tite disse...

Adorei o texto e a moralidade final.
Fantástico!!!
Parabéns!

Anónimo disse...

O mundo está cheio de Hienas que triunfam, sem deixarem de o ser.

Ka disse...

Há hienas por aí há...muitas! Mas continuo a acreditar que os actos ficam com quem os pratica (nem sempre mas na maioria das vezes)

Muito bom este texto e terminado de forma sublime. Afinal até o mal pode trazer alguma coisa de bom, neste caso a mudança de atitude.

bEijos

SONY disse...

patti,

Hienas?
Onde?
como-as ao pequeno-almoço...

.-)

jito,

sony